Espera-se sempre muito do cinema do alemão Christian Petzold. Sobretudo quando ainda recordamos a genialidade tão bem empregou no anterior Phoenix, também ele enredado numa questão de identidade e que acaba por ter algum eco no ambicioso, ainda que não totalmente conseguido, Transit. Mas este é também o filme que mais nos tem motivado uma reflexão mais profunda, para além do efeito de visão imediata que se pode tornar algo redundante pela proximidade a Casablanca, de Curtiz
Sim, estamos aqui em presença de pessoas que procuram as suas cartas de trânsito, não para Lisboa, mas para o México, embora sem essa componente de época. O filme desenrola-se nos dias de hoje em Marselha. E, sim, a trama é muito próxima do clássico com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, isto apesar da escritora alemã Anna Segher, o tenha iniciado em 1941, portanto antes do filme com o guião atribulado e assinado por Julius e Philip Epstein e Howard Koch, considerado por muitos como o guião mais bem escrito de sempre.
Seja como for, e mesmo diante de uma reação menos positiva por parte da crítica aqui em Berlim, este até pode ser um filme que venha a motivar uma boa reflexão por parte do júri liderado pelo cineasta alemão Tim Tykwer. Até porque se trata de um caso que merece um conhecimento maior das suas circunstâncias e da obra que o serve.
Dito isto, Ainda assim, fica a ideia de um filme de época na atualidade e uma piscadela de olho (ainda que involuntária) a Casablanca, embora com uma influência de Kafka, de quem a autora assume alguma proximidade sobre um refugiado franceses que tenta fugir da França ocupada e do regime de Vichy, em Marselha. Aliás, ele própria judia e comunista fugiu para França em 1933. Alias, é a sua própria experiência como refugiada que acaba por a inspirar a escrever Transit.
A história torna-se mais complexa por ser contada do ponto de vista de um narrador que escapa de um campo de concentração alemão e chega a Paris, onde se encontra com outro foragido Georg (Franz Rogowski, uma espécie de sósia de Joaquin Phoenix, onde não falha sequer o seu lábio leporino, e revelado no recente Happy End, de Haneke) que lhe pede para entregar documentos a um escritor alemão chamado Weidel. Só que este quando o encontrar o autor já está morto, acabando por assumir a sua identidade, tentando assim usar o seu visa para alcançar o México. É claro que o México, parte da obra original, adquire hoje em dia uma ironia suplementar e com uma fronteira dominada por um muro. Seja como for, ao chegar a Marselha esta personagem acaba por ficar com os documentos de outro alemão morto, Seider. Ou seja, em vez de duas a história passa a ter três pontos de vista; Weidel, Seidler e a sua.
Ao preferir ignorar o registo histórico, Petzold opera um risco singular que mistura passado e presente, transmitindo à narrativa uma nova dose de incerteza, montrabdo-nos refugiados que acabam por ser de várias épocas. E não é que aqui Transit acaba mesmo por tocar em Our Madness, de João Viana? Pelo menos no sentido de que se sublimam os refugiados, ou os escravos, ou os oprimidos, num espaço e num tempo incerto. É esse lado mais profundo que Petzold visa embora acabe também por ficar enleado nas dificuldades em que se meteu.
A ideia de maximizar a ideia do fascismo, sem época, é boa, aliás, é ótima! Só que as diversas camadas de informação, como o narrador do livro, assumido como um prisioneiro que não conseguiu escapar, bem como as diversas trocas de identidade que acabam por se fundir poderão ser demasiado complexas para alguns espetadores. É que pelo material e pelo talento do realizador teríamos aqui um sério candidato ao Urso. O que, de resto, nem fica afastado. É que o poder e a profundidade com que Petzold sempre coloca nos seus filmes seguramente irá merecer uma maior avaliação do júri. E o festival ainda vai no início. Assim sendo, este é um filme que ficar na nossa mente a marinar e eventualmente a ganhar maior espessura.