Em La Cordillera de los Sueños, o documentarista chileno Patricio Guzmán completa um magnífico tríptico documental (com A Nostalgia da Luz, de 2010, e O Botão de Nácar, de 2015), em que a História do seu país se encontra com a Natureza, num dos mais fascinantes momentos de cinema dos últimos tempos. Que deverá continuar como ele nos confessa no final da nossa conversa.
Guzmán não era para ser documentarista. Foi o empurrão da história do seu país que o desviou da ficção para a observação e combinação de temas políticos e elementos naturais sob a forma documental. É mais fácil e rápido, dirá com inesperada modéstia na nossa. entrevista em maio passado no festival de Cannes, onde o filme passou na seleção oficial em competição. Modéstia, porque o seu trabalho é de enorme relevância, não só política (a chegada ao poder de Salvador Allende e, sobretudo, a ditadura militar que se sucedeu ao golpe de estado de 1973, por Augusto Pinochet, tem tomado conta da sua criação artística), mas também cinematográfica e estética, já que este impressionante acervo permite explorar novos campos de uma sensibilidade documental ímpar.
Tanto Nostalgia da Luz como O Botão de Nácar são duas obras-primas incontornáveis. Na primeira, olha-se o espaço a partir do deserto de Itacama para chegar à pesquisa dos restos mortais dos prisioneiros políticos desaparecidos durante o regime de Pinochet; já em O Botão de Nácar, o olhar vem das estrelas para se acercar da importância da água e daqui as tribos e a relevância deste elemento que associam à morte. Esta Cordilheira dos Sonhos (numa tradução literal) acrescenta um lado de um cinema que diríamos arqueológico, pela relevância dos Andes como uma síntese de pedra dos filmes anteriores e regista o passar do tempo. Em que o medo dos abalos constantes mantém o povo sereno, ainda que amedrontado. Também aqui o sublinhado político do trauma psicológico subsiste a memória dos crimes cometidos contra o povo chileno – verdadeiros crimes contra a Humanidade.
A voz macia e pausada que seguimos nesses filmes acompanha agora a presença física diante de nós. A mesma que víramos também do documentário de Nanni Moretti, Santiago, Itália, agora estreado, como um dos intervenientes da memória desse 11 de setembro de 1973. Um contributo que Guzmán se sente demasiado à vontade para oferecer já que dedicou toda a sua carreira ao passado e trauma chilenos. Por isso mesmo, esta trilogia que se completa com A Cordilheira dos Sonhos serve de suporte – ainda que bem mais vasto – a Santiago, Itália.
Insider – Sei que participa em Santiago, Itália de Moretti. Já viu o filme?
Patricio Guzmán – Não vi, não vi. Mas estou curioso.
Será esse documentário um prolongamento desta sua trilogia e até do seu trabalho mais vasto sobre o Chile?
Não creio. O Nanni Moretti tem a sua intenção bastante particular. O meu trabalho vai num sentido diferente, creio eu, mas não posso afirmar por não ter visto o filme.
Podemos dizer que o seu cinema é um cinema de memória? Isto no sentido que poderia ter sido outra coisa, não fosse moldado pelos acontecimentos políticos no Chile.
Acho que começamos a fazer cinema sem termos ainda uma ideia precisa. Digamos que é a vida que nos leva a um certo lado e acabamos por aceitar aquilo que ela nos dá. No meu caso dá-se a coincidência histórica e cinematográfica, em que eu estou no centro.
Será este o fim da trilogia sobre esta memória da história do Chile?
Nada disso, continuarei a fazer o mesmo. Gosto de pesquisar a memória do Chile. E a partir de ângulos diferentes. Na verdade, comecei a fazer filmes sobre a memória desde a La Batalla del Chile (dividida em três partes 1975, 1976, 1979), que foi o meu primeiro filme. Isto porque antes de La Batalla del Chile pensava em fazer ficção. Foi para isso que estudei. Mas como estava no Chile e observar aquela realidade percebi que deveria fazer documentários. Era mais rápido e muito mais interessante.
Sente que A Nostalgia da Luz, O Botão de Nácar e agora A Cordilheira dos Sonhos é uma parte distinta dessa filmografia?
É apenas a continuação. É uma maneira de terminar esta trilogia, entre o norte e o deserto, o Sul e a cordilheira. Em relação aos anteriores apenas acho que estes filmes são melhores.
Aqui sente-se um enorme trabalho na montagem, no uso de imagens muito belas que contrastam com as mais dolorosas, de arquivo, com a gente da cidade; no fundo, a natureza e o homem. Como trabalhou essa mistura?
Porque elas estão frente a frente, estão muito próximas uma das outras. Em Santiago não podemos deixar de ver a cordilheira. É uma parede enorme. Ela está lá sempre a olhar para nós. Portanto eu digo que há uma relação entre a montanha e as pessoas. Há uma certa depressão no Chile – uma depressão mental, entenda-se – que se deve à montanha. É demasiado grande. Impõe-se.
Mesmo assim, nesta trilogia começamos quase sempre de uma forma subtil, com um olhar sobre a natureza, sobre os elementos, por vezes astrais, evoluindo depois de forma algo subtil, para a política e a história do Chile. Como organiza toda essa estrutura?
Falar de política ou de problemas ideológicos é algo muito duro para o espetador. Parece-me impossível fazer filmes totalmente políticos. Foi algo que fiz antes, por isso sei o que digo. Por isso, cada vez mais aprecio rodear o ambiente político de um aspeto geográfico, de mais espaço, para que exista mais equilíbrio. Por aí descobrimos que entre o ambiente e os elementos naturais existe uma ligação direta com os problemas de um povo.
Ao ver o seu filme percebemos que o capitalismo ganhou. Por assim dizer, o Pinochet ganhou. Como vê o presente hoje? O que se pode fazer?
Não faço ideia. A situação é muito delicada. Não sei o que se poderá passar. Talvez um momento social que se oponha. Algo que aconteceu no passado, há cerca de cinco anos atrás, com estudantes. Foi importante, mas acabou de repente. Durou seis meses. Pode ser que volte a acontecer.
Por outro lado, verificamos fenómenos extremistas em vários locais do mundo. Vivendo na Europa, de que forma encara estes movimentos de extrema direita?
O problema é que eu não sou um especialista em política. Sou um cineasta. Aproximo-me da realidade, observo e filmo. Mas não sei diagnosticar o que se irá passar num país. Não é esse o meu papel. Acho que aqui (em França, onde foi realizada a entrevista, mas também o país onde vive desde 1973) vai ser cada vez pior.
No Chile a oposição tem tão pouca força que irá durar muito tempo até sair da crise.
Onde acha que este trabalho metafórico o irá levar. O que lhe interessa mostrar neste momento?
Pode-se fazer muitas coisas. Interessa-me muito a aproximação da geografia às pessoas. Temos quase cinco mil quilómetros de costa. Há uma linha incrível entre o oceano e a terra para explorar num outro filme. A costa chilena é fantástica. Há indígenas no Norte e no Sul que têm uma conceção distinta do oceano. Pensam que o oceano é diferente. Isso já dá para um começo. Pelo meio temos todo o complexo industrial e todo o isolamento do Chile. Isso é outro tema. Mas há outras possibilidades. Por exemplo, há muito vulcões. Há vulcões por todos os lados. E os vulcões dão origem a terramotos. No Chile sempre que a terra se move as pessoas assustam-se. Vivemos sempre com o medo de ter um terramoto. Isso é outro tema estupendo. O medo.