Em tempos de confinamento, as rimas íntimas de Amor Fati, de Cláudia Varejão, assumem-se como o mais inesperado haiku.
São cada vez mais os eventos cinematográficos forçados a recorrer ao afastamento geográfico das salas de cinema e empurrados a um ‘recatamento’ doméstico da mais asséptica modalidade online. É o caso do festival de cinema documental Visions du Réel, a decorrer em Nyon, na Suíça, até ao próximo dia 5, que conseguiu adaptar-se a tempo para converter em plataforma online toda a sua programação. As secções de competição iniciam hoje, dia 25 de abril, com uma fornada de estreias mundiais e internacionais que podem ser seguidas aqui.
Festival Visions du Réel 2020 – Competição internacional de longas metragens
Valerá a pena recordar que este festival suíço do cinema do real, atualmente dirigido por Émilie Bujès, foi fundado em 1969 por Moritz de Hadeln, antes ainda de ser convidado para assumir o destino criativo do festival de Locarno (de 1972-77), a que se seguiu Berlim (de 1979-2001) e depois Veneza (apenas em 2002 e 2003). Já se sabe que a edição de 2020 será diferente. Impedida de ter público, afirma-se totalmente online e gratuita – apenas com o limite de 500 pedidos para cada sessão.
A nossa primeira sugestão já vinha antecipada, era o novo filme da portuense Cláudia Varejão, Amor Fati, produzido por João Matos da Terratreme, aliás, o primeiro título a surgir na lista (alfabética) da programação de longas internacionais. Acaba por ser também um regresso (ainda que num formato circunstancial) a Nyon, quatro anos depois de ali apresentar, em 2016, o sereníssimo Ama-san, que viria a ganhar o prémio do DocLisboa, entre inúmeras distinções internacionais.
Quase de imediato percebemos que Amor Fati – cujo significado é “aceitação do real”, como explica Varejão na ‘carte blanche’ (cujo vídeo reproduzimos) – segue a premissa de intimidade, da união de pessoas. Um gesto que acaba por ‘mexer’ de uma forma paradoxal na singularidade da sua própria fruição, desde logo limitada pela singularidade dos tempos em que vivemos, em que nos é imposto um “distanciamento social”.
Após um longo processo de casting, em que justamente se pedia esse elemento de extrema identificação, mesmo que fosse com um animal, acaba por surgir uma ligação entre diferentes relacionamentos talhados por este binómio de proximidade e distância. Seja a usual relação de gémeos ou irmãos ou irmãs muito chegadas, em diferentes faixas etárias aqui bem representadas, ou um travesti com o seu cachorro, a relação entre dois jovens trans, bem como um homem com o seu cavalo ou outro com uma águia ou até um jovem africano cedo e acérrimo adepto do Benfica.
Amor Fati assume o risco de ser um filme sobre aquilo que liga as pessoas de uma forma intensa e íntima. E assume também o risco da ausência de elementos evidentes de rutura, tradicionalmente mais talhados a desenhos narrativos. Acaba então por ser nessa intenção de rimas que vamos cedendo a esta métrica de poema, como se de um delicado pas de deux se tratasse.
“Cada um de nós é apenas a face de uma moeda, cujas metades foram separadas”, recorda-nos o poema com que inicia Amor Fati. Ora quando em todo o lado nos impõem um ‘distanciamento social’, neste caso, pela invisibilidade do online, Cláudia Varejão propõe-nos precisamente inúmeras versões do inverso. No fundo, como um inesperado haiku de múltiplos significados, num constante vaivém entre a proximidade e a distância.