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O melhor é prepararem-se para o pior (ou o melhor)! É que Quentin Tarantino desde cedo nos avisou que não seguirá o roteiro de um cinema formatado. Sim, sempre usou e abusou dos clichés (e dos géneros!) para conceber a sua obra. Aqui, veja-se o desplante, serve-se do género western para ensaiar um sangrento who dunnit de quase três horas, com uma audácia formal próxima de Agatha Christie. E sim, tintada de sangue, c’o a breca! É claro que já vimos isto. De resto, Quentin nem sequer se preocupa em ‘reciclar’ o cerne de Cães Danados, já que a acção se passa, tal como naquele, no interior de um espaço fechado, onde tudo acontece em convulsões despoletadas pelos ímpetos de violência tão familiares no cinema de Tarantino. E se a isso juntarmos a banda sonora genial de Ennio Morricone, teremos então uma barrigada de suculento cinema. Só não é obra-prima, porque, por certo, o próprio autor recusaria tal designação.
Ora, no ‘oitavo filme de Quentin Tarantino’ muitos entenderão que o ‘mestre’ está a perder o mojo, que os diálogos perderam a mesma frescura depois do díptico Kill Bill, que o cineasta se alarga em tempo e se consome em redundância de diálogos nevróticos, excessivos ou até inconsequentes. Confesso até que, numa primeira visão, proporcionada pelas cópias recentes a circular na Internet, senti o mesmo desconforto de não detectar a mesma novidade que sempre esperamos do maldito realizador cinéfilo que abalou o cinema americano.
Pois aqui estamos numa terra sem deus, apenas com aqueles que Quentin Tarantino venera e aceita como mestres, aqueles que penetraram com profundidade no género, mas deixando o seu desafio de derrapar nas convenções. É a série B!, grita-nos em cada frame do seu cinema, é o cinema dos malditos, dos desenraizados, tal como ele que passava os dias no cinema com a mãe solteira, marcado com o selo das sessões duplas que combinariam um western e um filme de terror, ou uma fita de gangsters com um título de ficção científica. É como este western arraçado de policial, não à maneira de Hitch, mas quem sabe com uma encenação teatral em que todos podem (e se calhar até são) culpados, à maneira de Shakespeare.
E se Tarantino nos dera já o gozo operático e lento da abertura, usando em todo o esplendor plano Panavision, logo nos tirará o tapete dos pés, quase logo que o inevitável Samuel Jackson apeado que pergunta ao cocheiro da diligência que se aproxima: got room for one more?, atira, diante uma pilha de cadáveres. Ele é Marquis Warren, um negro ex-major do exército federado que ainda tem bem presentes os conflitos raciais vividos durante o conflito civil e que, de resto, acompanharão todo o filme, aqui em missão de devolver criminosos e resgatar a sua recompensa. Mas ele não é um ‘preto’ qualquer, pois carrega no seu bolso uma carta redigida pelo próprio Presidente Abraham Lincoln. No interior da carruagem seguem Kurt Russell, ele é John Ruth, o caçador de prémios responsável por Daisy Domergue (Jennifer Jason-Leigh), uma mulher com um olho negro condenada por enforcamento, a que se juntará depois o futuro xerife Mannix (um revelador Walton Goggins). Este grupo acabará por fazer uma paragem forçada no estaminé da Minnie para escapar ao mau tempo.
Lá dentro juntam-se ao ressentido general sulista Smithers (Bruce Dern), o taciturno Joe Gage (o torcionário ‘cão danado’ Michael Madsen) e o colorido Oswaldo Mobray (Tim Roth, impecável no seu cuidado sotaque british), bem como o mexicano Bob (Demián Bichir). Um elenco notável, que representará no interior dessa cabana as divisões da jovem nação americana. É também aí que se arquitectará esta peça sobe o que terá sucedido com a desaparecida Minnie. Ah, sim, e com umas famosas gomas coloridas…
Mas mais do que tudo existe o prazer da viagem do filme, como sempre sucede com Quantin Tarantino, com o sabor dos diálogos, super condimentados, e, claro, o inevitável banho de sangue. Pode ser que tudo isso relativize uma mensagem de racismo, misoginia, mas pode acontecer também que todo este xadrez humano cumpra funções actuais. É que, como sempre, Tarantino encena a sua própria farsa, mas mantém-se fiel aos seus próprios cânones, de filme série B, com tiques de depravação sexual. Por isso mesmo, nada como não resistir a uma segunda visão, seguramente mais coesa. Talvez assim consiga explicar o que sucedeu às gomas…