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Lav Diaz: “Gostava de fazer um James Bond, mas teria cinco horas…”

De repente, Lav Diaz deixou de ser um nome desconhecido. É referido, e não raras vezes, a propósito da duração dos seus filmes de quatro, cinco, oito, onze horas…!! O tal slow cinema que o tem inundado de prémios. De Veneza (Melancholia, 2008, na secção Horizontes, a este ano com o Leão de Ouro, The Woman Who Left), passando por Locarno (2014, Leopardo de Ouro, com From What is Before), Cannes (Norte, the End of Story, 2013, nomeado ao prémio Un Certain Regard) a Berlim (em fevereiro passado, com A Lullaby to the Sorrowful Mystery, nomeado ao Urso de Ouro e vencedor do prémio Alfred Bauer). Foi precisamente no inverno da capital germânica, depois de assistir à projeção integral dessas oito horas de projeção, que conversámos com o filipino calmo e sorridente. Ele que defende até que não há mal nenhum em fazer um intervalinho durante a projeção. É a tal ideia de um cinema vivo que conta. Esta foi a nossa entrevista no passado festival de Berlim.

Mas apesar de um lado assumido de profunda cinefilia, defendido já com uma dezena de filmes longos, a preto e branco, Diaz é um homem de gosto aberto. E não só pelo título que escolhemos…

Interrogo-me se todas as pessoas que o entrevistam começam por mencionar a duração do filme?…

Lav Diaz – (risos) Sim, é verdade, costuma ser, mais ou menos, essa a pergunta inicial.

 No entanto, parece claro que era este ritmo (de 8 horas de duração em A Lullaby to the Sorrowful Mystery) que entendia necessário para o filme.

LD – Claro. Este é o meu décimo filme longo, por assim dizer. Os meus filmes não são realistas, são habitados por pelos locais e espaços que adoro. Quero criar personagens completos e narrativas completas. Não quero apressar as coisas. Para mim é melhor assim. De qualquer forma, os meus filmes também não são para o fucking market

 Diria que os seus filmes também não precisam do mercado.

LD – Não, os meus filmes são cultura, são para o cinema, para a Humanidade. Não os faço por dinheiro. Não é para isso que eu trabalho.

Mesmo que poucas pessoas possam ver os seus filmes.

LD – Isso irá mudar. A cultura vai crescer e eles virão. Não se preocupe com isso. É como a pintura. Ninguém queria saber das pinturas do Van Gogh. E quanto valem hoje os seus quadros?

Em todo o caso, este filme poderia ter quatro horas e, ainda assim ser fantástico. Porque razão entende que um plano pode durar sete minutos ou vez de três. É uma opção estética também?

LD – Não tenho uma resposta para isso. Por vezes, é algo que sinto, outras é o senso comum de que o corte será apenas em determinado momento. Como sou eu que faço a montagem dos meus filmes, não penso muito na sua duração. Apenas filmo sem ter essa consciência. Mas também não me interessa a duração do filme. É durante a montagem que isso surge. Aí crio umas três versões do trabalho e depois decido-me por uma.  Não há nada premeditado ou qualquer justificação técnica. Não quero fazer filmes subordinado ao tempo.

 Sente que se fosse montado numa versão mais curta essa experiência seria diferente?

LD – Seria diferente, concretiza. Completamente diferente.

 No entanto, sente-se, por exemplo, que se perdermos uma hora deste filme não perdemos o filme…

LD – Isso faz parte do processo. É normal. Entusiasma-me mais a ideia de que o cinema faz parte da vida. Nesse sentido, a via desliza, tal como o cinema e emerge. Para mim, é a mesma coisa. O cinema não é só aquele retângulo. Se movermos a câmara para o lado, percebemos que existe todo um outro universo. É esse o poder do cinema. Faz parte da vida.

De certa forma, o seu ponto de vista já é histórico ao abordar este tempo da revolução filipina contra a invasão espanhola.

LD – Este é um filme sobre a revolução e é também um trabalho sobre a memória. Temos de examinar o passado e o pós-colonialismo. Vem tudo daí. E o melhor meio para o fazer é através do cinema. O cinema é uma ferramenta muito poderosa, é o melhor veículo para este discurso, pois podemos reinventar a História e ao revê-la vemos o presente. O passado torna-se presente. É importante.

 É interessante pois o filme português em competição aqui em Berlim (Cartas da Guerra) também foca o colonialismo, confrontando o passado e também o presente. Até que ponto nas Filipinas este período é sentido como uma ferida que ainda não sarou?

LD – Nas Filipinas passou-se a mesma coisa como em Portugal. São as mesmas instituições, a corrupção, a barbárie. Acha que a Humanidade muda? Nesta altura (fevereiro), as pessoas estão a morrer no Mediterrâneo afogadas e ninguém parece fazer nada.

 Claro, se conseguirem chegar a terra nós tentaremos fazer algo…

LD – Sim, é uma grande negação e negligência em todo o mundo. É tudo a mesma coisa.

Mudemos de assunto: como introduziu as ideias de André Bazin, sobre a ideia do tempo?

LD – Repare, tudo isso tem a ver com a minha contínua procura e pesquisa. Não paro de ver cinema. Parte disso tem a ver com a forma de encontrar a nossa própria estética ou verité; alguns chamam-lhe estilo. No meu caso, numa determinada altura da minha vida entendi que as perspectivas do André Bazin eram as mais próximas do meu cinema.

 Falemos um pouco dos seus longos planos. Ficamos com a impressão de que tudo está previamente detalhado.

LD – Sim, no cinema é tudo ensaiado. Com a exceção dos documentários. Claro que a parte mais difícil são os ensaios e a planificação dos planos. Mas quando digo ação posso usar tanto o primeiro plano como o segundo. É mais fácil.

 É por isso que não usa grandes planos?

LD – Não gosto de fazer close ups porque quero ser apenas um observador. Eu era um jornalista como você. Quando era jovem trabalhava em jornais, talvez por isso a objetividade seja a minha forma de perspetivar e compreender o mundo. Mas isso não significa que não goste de grandes planos nos filmes. Eu gosto de todo o tipo de cinema.

Quando começou este projeto tinha já tudo preparado ou até que ponto contava com essa estrutura?

LD – O meu processo usual parte de uma story line, já o guião é feito durante a rodagem. Mas este foi um filme particular, pois demorou 17 anos a concretizar. Escrevi a primeira versão do guião em 1998. Nessa altura tinha apenas feito três curtos filmes, de duas horas.

 Curtas, portanto (risos)…

LD – (risos) Sim, na altura tinha ainda vários cortes e eram feitos com uma dinâmica diferente. Mas eram curtos, sim (risos). Só que nessa altura era muito difícil fazer um filme de época como o meu. Durante os anos fui tentando arranjar dinheiro ao mesmo tempo que aumentava a minha pesquisa. Há quatro anos, a minha produtora, Bianca Balbuena, começámos a fazer a pré-produção. E comecei a reescrevê-lo de novo.

Neste filme usa muitas personagens reais ou são ficcionadas?

LD – O grupo que procura o Gregorio de Jesus é composto por personagens reais. Existem outras, como Bonifácio, o herói nacional.

Como foi que descobriu o cinema como um meio de arte?

LD – Para mim foi algo natural, pois venho de uma família muito ligada ao cinema. O meu pai era viciado em cinema. Nós vivíamos no meio da floresta, na parte sul do país, onde ensinavam os índios pagãos das tribos. Mas durante todos os fins de semana íamos às cidades mais próximas ver cinema, programas duplos. Vamos oito filmes por semana.

 Filmes asiáticos?

LD – Uma combinação de filmes, kung fu, japoneses, de Hollywood, filipinos. Era uma mistura de filmes.

O que lhe ficou desse período?

LD – O que me ficou foi mais o lado estético. Todos os meus filmes são a preto e branco. Essa é uma fixação minha, talvez por ter visto muitos filmes a pb. Para mim, o universo alternativo do cinema é a preto e branco. Acho que é mais fácil abstrairmos-nos do lado mais artificial e focarmos-nos em aspetos mais profundos. Na história.

É interessante essa experiência, apesar de, paradoxalmente, ter iniciado a vida profissional num campo totalmente oposto…

LD – Sim, comecei a minha vida como economista e fui também músico (risos), fiz muitas coisas diferentes. Tinha de encontrar dinheiro para sobreviver. Era um jovem pai e tinha de ganhar dinheiro para sustentar os meus filhos.

 Quando foi que tudo isso se alterou?

LD – A epifania surgiu em Calais (França), quando o prof de literatura nos pediu para ver um filme do filipino Lino Brocka (Manila and the Claws of Neon, de 1975) e fazer uma análise crítica. Foi um filme durante o período mais negro da lei marcial. Durante o regime brutal de Marcos. É um filme muito bonito e poderoso sobre o que se passa. Foi aí que eu pensei que poderia vir a ser um realizador. Foi uma verdadeira epifania. Percebi que era isso que queria fazer. Mas como não sabia como continuei a fazer música.

 É curiosa a sequência em que é mostrado um filme em cinematógrafo, com os irmãos Lumière. Trata-se de uma homenagem?

LD – A primeira projeção de cinema foi a 28 de dezembro de 1895. Um momento que coincidiu com a revolução filipina. E é verdade que os Irmãos Lumière vieram às Filipinas. Só não sei o dia exacto. Mas vieram um ano depois, por isso coincide mesmo com a Revolução que começou em 1896. E eles estavam a fazer uma digressão para levar o cinema ao Oriente. Já tinham estado em Tóquio, Hong Kong, Singapura, Kuala Lumpur, Mumbai. E toda a gente ficava chocada com este novo meio.

 Quanto tempo demorou a rodagem?

LD – Foi apenas seis semanas. Fomos todos para uma parte sul do país, ficámos lá um mês, depois fomos duas semanas para um outro lugar.

 Quando fez o seu filme anterior, que levou a Locarno, em que estado estava este?

LD – Estávamos já na fase de pré-produção quando chegou esse projeto de Locarno. Nesse sentido, todos os meus projetos estão interligados.

 Está a trabalhar em algo novo?

LD – Estou a trabalhar em três projetos inacabados. Um deles comecei a rodar em 2006 e ainda estou a trabalhar nele. Há um outro que vamos filmar em Abril. Parte já está filmada. O meu filme de 11 horas, que rodei também durante onze anos. Durante esse período quatro atores morreram, temos de ajustar a história.

 Acha que os críticos são aqueles que melhor compreendem o seu cinema?

LD – Sim, acho que sim. Mesmo quando interpretam demasiado, mas isso faz parte de ser crítico. Mas é bom que vejam coisas. Sempre considerei os críticos como filmmakers. Vocês fazer parte do processo. São vocês que propagam o cinema, mais do que o realizador. Nós apenas fazemos o filme. A melhor parte do cinema é quando ele é discutido e confrontado.

 Disse que gostava de todo o tipo de cinema. Quais são os seus guilty pleasures?

LD – Gosto de tudo. Por exemplo, gosto muito dos filmes do James Bond. Eu cresci a ver os filmes do James Bond.

Sentir-se-ia mesmo tentado a trabalhar num outro meio de produção tão diferente?

LD – Não me importo de fazer filmes de género. Só que tenho de ter todo o controle criativo. Gostava de fazer um James Bond, mas teria cinco horas… (risos) Tenho de ter o controle criativo… (risos) Porque não?

E a preto e branco?

LD – A preto e branco, claro! Pode ser que o Spike Lee seja o meu James Bond.

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