Ficámos convencidos com A Assassina quando vimos o filme de Hou Hsiao Hsien na estreia mundial, em maio passado, no festival de Cannes, onde o realizador de Hong Kong haveria de ganhar o prémio de realização. Contudo, só alguns meses mais tarde haveríamos de o encontrar, em San Sebastian, onde o seu filme figurava numa das secções. Não perdemos a oportunidade e falámos a sós com aquele que é considerado um dos maiores cineastas do mundo. Naturalmente, uma comunicação que teve de motivar o meu melhor castelhano para transmitir as questões à tradutora que o acompanhava. Nunca saberemos o que foi lost in translation, até porque Hou falava muito e as respostas eram manifestamente mais escassas. Não imaginamos então como seria a resposta satisfatória para nos explicar a forma como foi concebido este universo de perfeito requinte que cristaliza o género wuxia e que nos separa de um hiato de quase dez anos. Muito para perguntar, pouco tempo para o fazer. Aqui fica a entrevista possível. Apenas com um único senão: o de assumir que não conhecia Manoel de Oliveira. Isto apesar de ter integrado o grupo de realizadores que, em 2007, apresentou o filme de curtas Cada um o seu Cinema. Ter-se-ia perdido na tradução?
Foi um período de dez anos para fazer este projeto. Gostava que me falasse um pouco desse processo e se, de certa forma, pretendia recuperar um pouco o estatuto dos filmes clássicos de artes marciais (wuxia)?
O que sucedeu foi que durante cinco anos encarreguei-me da presidência de dois festivais, em Taiwan – o festival de cinema de Taipei e o festival de Golden Horse, também em Taipei. Durante estes anos estive muito ocupado. Mas tinha muito vontade de fazer um filme, o problema era mesmo o tempo. Quanto a este filme, desde pequeno que me interessava muito os relatos da dinastia Tang, um tema que me fascinava. Assim que tive tempo livre comecei a trabalhar no guião e a arranjar apoio financeiro. Só que não tinha o tempo para filmar, pois queria dedicar-me ao meu papel que representava nesses dois eventos de modo a que pudessem estabilizar-se.
Gostaria também de perguntar-lhe sobre a sua técnica e se se inspirou nos mestres japoneses clássicos? No fundo, quais foram as suas influências para este filme?
Quando fiz o filme nunca pensei em qualquer tipo de influência. O mais importante para mim era encontrar o equilíbrio entre a imaginação e a realidade. Em primeiro lugar interessou-nos estudar o contexto realista histórico e social; depois, com a minha equipa comecei a desenhar as cenas, num processo em que participo com opiniões. Por outro lado, a indústria cinematográfica estava repleta de vários filmes populares de artes marciais, bem como os típicos filmes de samurais vindos do Japão. Por isso, a a minha inspiração acabou por residir mais das minhas memórias de infância e dos filmes que eram populares quando comecei a fazer cinema. E dos livros que lia avidamente, penso mesmo que li tudo o que existia no tema. Entretanto, fascinou-me também a história de Nie Yinniang, de Pei Xing. Sempre pensei que um dia faria um filme sobre esta personagem.
Quer explicar-nos a sua razão por detrás da escolha para iniciar o filme com aquele reflexo do passado a preto e branco, para depois explodir naquela assombrosa cor?
O prólogo a preto e branco diz respeito a duas tentativas de assassínio. Sendo que a primeira acontece de forma muito brusca, mas no segundo apercebe-se que está ali uma criança e decide não o concluir, mas acaba por ser advertida. No fundo, são duas tentativas de assassínio que estão muito próximas dos romances originais. Quando o filme passa a cor, passa a ser mais a adaptação do original.
Mesmo tratando-se de um filme de artes marciais, A Assassina tem uma humanidade profunda, em detrimento de uma estética acrobática. Foi essa uma decisão que tomou à partida?
É este o meu estilo e a minha forma de fazer o filme. A mim interessa-me um tipo de filme realista e não quero ter personagens que andam a voar pelo filme como se fosse pássaros. Acho que isso não deve acontecer. O filme deve exibir as limitações próprias dos seres humanos. É esse realismo que eu procuro.
Mas não teme que o estilo mais fluido do filme possa não ser compreendido da mesma forma pelos fãs do wuxia?
Eu não faço filmes a pensar no mercado nem a pensar no público. Aliás, isso foi alho que acompanhou toda a minha carreira. Tento encontrar sempre o meu estilo, sem pensar no mercado ou no público ou em imitar o modo tradicional de fazer cinema. Para mim é mais fácil ser eu próprio e seguir o meu próprio estilo.
A atriz Qi Shu tem um trabalho magnífico. Já trabalhou com ela (Três Tempos, 2005) o que me pode falar da sua composição?
A Qi Shu é uma boa amiga e obedece às opiniões do realizador. De início pensei em criar uma protagonista que se escondia nas árvores e matava as pessoas à distância. Mas um dia a Shu subiu a uma árvore e percebi que tinha medo da altura. Por isso decidi optar por outra via.