Quarta-feira, Outubro 16, 2024
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Maratona Boca do Inferno: trilho de chamas e receio

Um regresso ao futuro do cinema independente com Chrisyopher Lloyd na Boca do Inferno. E uma maratona de filmes no mesmo trilho de chamas e receio

Regressa ao IndieLisboa a maratona Boca do Inferno, com o seu romper de vagas a erodir os tabiques frágeis da nossa casca cerebral. Para além das habituais curtas que envolvem a demonização, canibalismo e paixões satânicas, seja a descair no apocalipse do quotidiano ou do mundo em si, a Boca do Inferno apresenta no seu espiráculo a percepção e paranoia (temperadas com fundamentalismo religioso), num conjunto de longa-metragens, em plano entre dia 6 e 10 de Maio.

As longas em causa são maioritariamente europeias, incluindo países como a Bélgica, Irlanda, Espanha e Rússia.

Carles Torras apresenta Callback, um filme de suspensão e de inesperada violência. Martin Bacigalupo dá aqui vida (ou uma não-vida) a um evangélico fervoroso que baloiça comodamente no seu cadeirão, com um par de cuecas da sua recente colega de quarto, e o ar condicionado ligado a bafejar uma pequena bandeira americana pendurada, a serpentear sem parar. É um plano expressivo do panorama geral. Toda a longa-metragem segue a solidão dum wannabe actor, fustigado pela negação e um trabalho medíocre numa empresa de mudanças em Nova Iorque.

Com Manhattan a erguer-se ao longe e para lá do rio, vemos um homem nos arredores do sonho americano, a repetir frases feitas, clichés, e umas linhas de guião. Todas as suas relações são distantes e causam constrangimento, pelo seu semblante alto e uma voz plana, quase robótica, a soar a um ameno roncar de escape. Uma persona quase dostoievskiana à la Travis Bickle, alimentada pela humilhação e ilusões de grandeza.

The Alchemist Cookbook, de Joel Potrykos

A maratona não desiste da convulsão do vício. Joel Potrykos regressa após Ape e Buzzard, aclamados em Locarno e Ljubljana, respectivamente. E o filme, The Alchemist Cookbook, não foge ao espírito rebelde dos outros, à paranoia. Centrado num rapaz que se isola na disciplina da sua crença, quase mediaval, da alquimia pseudo-satânica, seguem-se cenas marcantes duma descida à demência da alienação. Ele dança e brinca na floresta, apesar de um suporte na perna sugerir uma lesão qualquer desconhecida. Cobre-se de luzes natalícias e espreita por um rolo de alumínio como se dum telescópio se tratasse.

O quotidiano desenrola-se com experiências químicas e berradas a demónios inexistentes, enquanto atira rochas para o lago e conta os dias a traçar rasgos com uma faca num tronco de árvore. E tudo na penumbra curiosamente claustrofóbica da sua cabana e do bosque. Um prisioneiro de si. O filme não demora a descair na visão de fantasia raivosa do realizador.

Segue-se uma cauda como catalisador de crescimento pessoal. Nestas sessões, o Cinema Ideal dá continuidade com Zoology, de Ivan I. Tverdovskiy. Uma mulher, nos seus quarentas, rebaixada pelas colegas de trabalho, que vive com a mãe e num acanho de poucos amigos, conquista uma gradual confiança adolescente com o simples impacto duma cauda (literalmente) suspensa do fundo das suas costas. À procura de soluções no hospital, Natascha vê-se envolvida num romance infantil e de puro escárnio com o resto que lhe envolve. E a religião, como dito, é frequente na Boca do Inferno. A mãe de Natascha, temerosa, não aguenta os rumores no bairro de alguém, para ela ainda incógnita, carregar a sina do Diabo. Uma fonte de problemas. A actriz que carrega a cauda, Natalya Pavlenkova, venceu o prémio da crítica russa com este filme.

Home, de Fien Troch

Celebrado em Veneza com o prémio de realização, Home, de Fien Troch, é mais um dos selecionados para este festival. Com uma lente vérite e uma planificação recorrente de ecrã telefónico,  Home acompanha uma quase apática juventude no secundário. Ordinariamente, os grupos juntam-se no parque de estacionamento do supermercado, a beber, fumar, andar de skate e motas, como vemos em Kids (1995) de Larry Clarke. Contudo existe uma tríade conturbada de personagens, fundamentalmente um recém-saído do reformatório, dado a uma espontânea violência, e um perturbado jovem refém do excesso de amor da sua mãe. Sammy, modelo mais banal da comum rebeldia moderna, rapidamente descaí no que resultou da simbiose.

E agora um pouco de Christopher Lloyd no cinema independente. Recorrer a um romance do autor de terror Dan Wells também não foge à receita da sessão: I Am Not a Serial Killer. E é mesma essa a questão do personagem. Max Records, actor conhecido pelo filme Where The Wild Things Are, é um jovem diagnosticado como sociopata que acompanha um psicólogo e se força a um conjunto de regras que o evitam a rebentar ou expor o seu lado B. O seu esgar chega a sugerir um orgulho no título que lhe foi diagnosticado. Mas com o seu trabalho no morgue, reconhece um padrão nos homicídios que acresciam na cidade e começa uma investigação ao perfil do assassino, entrando em suspeita com o seu vizinho, papel de Christopher Lloyd. O sobrenatural rebenta neste contexto inesperadamente, e uma tremenda linha de cenas gore discorrem uma história insaciável, cuja filmagem não segue a aura televisiva comum ao género. Apesar, chega a ser uma aura analógica, gravado em película 16mm, e numa cidade distante e nevosa quase imune a datação, talvez anos 80 ou 90, com luzes retro e uma paisagem tão industrial como natural. Ou sobrenatural.

A Maratona Boca de Inferno começa dia 6 de Maio, às 23:00, e a Boca do Inferno Curtas está delineada para 10 de Maio, também pelas 23:00. Alguns dos filmes falados seguem fora deste horário, mas não deixam de fugir ao género. Como o género assim o pede. Ou faz por querer.

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