A vencedora do prémio do Pardi di Domani em entrevista ao Insider:
Em António e Catarina, a romena Cristina Hanes, vencedora do Pardi de Domani, na edição 70 do festival de Locarno, capta a essência do cinema num retrato filmado de um marialva lisboeta. Numa serie de sessões, este encontro devolve-nos um dos exercícios de cinema mais puros que vimos nos últimos tempos. Um reformado septuagenário seguramente com o seu passado de galã de bairro, acede ao convite da jovem a captar a sua persona. Ele é o homem à janela, a janela indiscreta do seu quarto numa casa dividida com outros velhotes desconhecidos. No olhar e nas emoções desde jogo de sedução que dali brotam, Hanes cria cinema a sério.
O exercício fazia parte do seu mestrado de cinema documental, do DocNomads, que a levou a três capitais europeias, incluindo Lisboa, naturalmente, acabando por recriar um belíssimo e intrigante retrato documental atravessado por uma luz que deixa apenas entrever toda a história que fica por contar e aquele plano da janela, o tal ecrã para onde Augusto, ou António, olha. Sim, ele é o homem à janela.
Este é um projeto da conclusão do seu mestrado do DocNomads em documentário. Poderia explicar-nos quais eram os seus planos com este projeto?
Logo depois de terminar o meu curso de Cinema na Roménia, decidi que iria prosseguir os meus estudos na área do documentário. Frequentei o Aristóteles Workshop na Roménia, que integra um workshop de 5 semanas para cidadãos da Europa Central e Oriental, uma espécie de mini-DocNomads e um dos realizadores com que estava a trabalhar disse-me que achava que um certo programa seria ótimo para mim, o DocNomads. E acabou mesmo por ser.
Porque escolheu Portugal?
Nesse sentido, Portugal não foi uma escolha deliberada, mas eu sabia que queria estudar no estrangeiro. O programa estava estruturado de uma forma que integrava uma mobilidade que iniciava em Portugal, prosseguindo depois pela Hungria e finalmente a Bélgica. O último semestre ficaria à nossa escolha e eu decidi regressar a Portugal, porque queria continuar a filmar o Augusto, que conheci no primeiro semestre, em 2014. Estava também muito ligada aos meus tutores que estavam muito ligados e comprometidos com o nosso processo de filmar.
Gostou de estar e filmar em Lisboa?
Devo dizer que Lisboa foi a cidade com que mais me liguei das três capitais do DocNomads. É muto mais fácil falar com estranhos nas ruas de Lisboa sem ser algo muito estranho para eles. A vida social nas ruas de Lisboa é muito especial, algo que não tinha encontrado em lugar nenhum até agora. A barreira da linguagem foi fácil de ultrapassar porque consegui aprender o básico com a minha personagem, o Augusto.
Depois de ver o seu filme fiquei curioso em como conheceu a personagem do António.
Conheci o Augusto muito cedo, logo que iniciei o mestrado em 2014, na minha primeira vez em Portugal. Tivemos um curso muito inspirado sobre o retrato, o seu significado e as formas pode assumir. O encontro com a Marta Andreu foi o meu ponto de referência para a minha procura fílmica. Mostrou-nos retratos documentais (de Serguei Dvortsevoy, Victor Kossakowski, Audrius Stonys, para referir alguns) que alargaram a minha visão de cinema.
Explique um pouco a forma de trabalhar da Marta (Andreu)
Ela tinha uma visão plástica da forma como os articular e de os tornar desafiantes para nós, realizadores e personagens, embarcando assim numa relação fílmica. A Marta Andreu definiu diferentes abordagens a retratos de forma que me permitiu encontrar o meu filme entre Encontro de Retrato e Retrato Espelho.
Foi nesse sentido que conheceu o Augusto?
Sim. Conheci-o porque estava à procura de alguém sem saber exatamente o que queria, mas percebi imediatamente assim que o vi. Conheci o Augusto de repente após esse curso. Ainda estou intrigada como essas coisas pode acontecer, como podem ter timings perfeitos. Conheci-o devido ao seu colega de apartamento, um cidadão português de Macau.
Como foi esse encontro?
Eu e a minha amiga sérvia Nevena Desivojevic do DocNomads estávamos à procura de alguém para fazer um retrato para um exercício. Ela acenou a este homem à janela num edifício no Intendente. De forma quase imediata pedimos-lhe para nos mostrar o seu apartamento e ele aceitou. Foi aí que conheci o Augusto, no corredor do apartamento. Ele partilhava o apartamento com três outros idosos, o que me pareceu logo um filme em si. A coabitação destes velhotes que não se conheciam.
O que mais a cativou no Augusto?
O Augusto tinha um brilho especial, de tal forma que percebi que tinha de fazer tudo para conseguir filmá-lo. Para mim, ele era uma personagem do Estranho, de Camus. Ele ficou logo entusiasmado com a ideia de uma mulher mostrar interesse nele. Era claro pelas suas histórias que se tratava de um Casanova e ele adorou esse jogo de sedução. Era algo que lhe fazia falta. E eu própria fiquei seduzida pela forma como ele se entregou.
Havia já uma ideia pré-concebida para fazer este tipo de projeto ligado a este exercício de sedução?
Em primeiro lugar, mais do que um jogo de atração, tratava-se da sua existência mínima num quarto em que assava longas horas numa observação reflexiva à janela. Uma forte solidão auto-suficiente no final da sua vida. Sem ele, este filme teria sido impossível de planificar. A sua força acho que é imediata, logo quando foi filmado. Acho que a minha presença amplifica ainda mais essa solidão. Combinamos filmar todos os nossos encontros e ele ficou fascinado por o estar sempre a filmar na mesma posição. Mas congratulou-se por ver no final as nossas interações filmadas. Disse que eu dançava melhor do que ele e que o filme era demasiado escuro.
Concorda que o documentário e a captação da realidade estão quase no limiar da ficção? Pergunto isto porque ambos são personagens do seu filme…
Sim, estamos ambos a interpretar uma versão de nós próprios. De qualquer forma, sempre nos representamos de acordo com quem temos diante nós. Acho que apenas lhe dei espaço para existir. Tanto nos documentários como na ficção, os cineastas quando trabalham com atores ou não atores, têm de os provocar por forma a fazer com que as coisas aconteçam diante deles. É muito difícil de prever de forma metódica as ações e reações que levam a essa condição, mas acho que é nisto que reside a magia dos encontros magnéticos.
Como surgiu essa ideia de Balzac e da flor de lírio que entra no filme? Foi sua ideia ou dele?
A referência de Balzac tornou-se parte do filme porque o António se encontrou como personagem do Lírio do Vale de Balzac desejando ser mais novo. Ele contou-me isso como se vê no filme e depois senti que alguns destes elementos necessitavam de alguma pontuação de referência, como a flor no início do filme. Acho que se torna evidente a sua participação no filme, o seu sentido lírico e a forma como falava. Foi ele quem trouxe ao filme todas essas referências e analogias, que eu só as inclui para alcançar a atmosfera que as suportasse e a estrutura que nos leva do início excitante à separação mais sóbria. Eu apliquei algumas limitações a mim própria relativamente ao espaço fechado, na tentativa de representar a prisão em que sentia. Assim que acabei de montar não sabia que este filme iria entrar no mundo e ele iria sair dele. Uma vez mais, é um timing muito estranho.
Gosto muito da forma como explora o poder da observação, do voyeurismo (a mirada daquela janela indiscreta) e a sedução – numa palavra, o cinema. A minha pergunta é esta: era essa proposta de cinema que procurava?
Em António e Catarina debrucei-me sobre o voyeurismo no sentido de que este filme poderia deixar esse efeito no espetador. Por isso, tive de calibrar por forma a não o sublinhar demasiado. A janela é o elemento que denuncia esse ato de voyeurismo. Mas é também a referência ao seu passado misterioso e à vida noturna dos homens, ao hedonismo. O jogo de sedução foi um canal para o revelar, para partilhar o espaço e o relacionamento. “, levou-me a um lugar muito importante na minha compreensão deste meio. Ao longo deste processo, tinha também a ‘bíblia’ que me guiou a fazer este filme, que foi o livro de Robert Bresson Notas Sobre o Cinematógrafo.
Está já a desenvolver a sua primeira longa? A tal co-produção entre a India e a Roménia? Quando poderemos esperar para a ver?
Sim, estou agora e trabalhar na minha primeira longa, com o título de trabalho ‘Uma arma e um saco’ juntamente com dois cineastas que conheci no DocNomads. O filme deverá ser filmado inteiramente na India, mas temos um produtor romeno, Andra Popescu. Acho que é ainda muito difícil de saber o ano de estreia, poderá ser 2019.