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Veneza74: Quando o homem-peixe comeu o leão de ouro

Guillermo Del Toro

 (e se colocou de perfil para os óscares)

Paulo Portugal, e Veneza

Kamel El Bash e Charlotte Rampling melhores atores e Xavier Legrand vence realização e prémio do futuro

De alguma, o júri presidido por Annette Bening fez justiça na premiação. Embora tenha esquecido, como se previa, aquele que considerámos o melhor filme do festival, Mektoub, My Love, de Kechiche (mas já lá vamos). De resto, The Shape of Water foi um dos primeiros filmes a ser exibido na 74 Mostra de cinema em Veneza e desde cedo convenceu o Lido.

The Shape of Water

No nosso caso, uma sensação que até já vinha de Lisboa, pois vimo-lo ainda antes do festival, por forma a entrevistar o mexicano Guillermo Del Toro, antes do filme ser exibido na sessão de imprensa. Logo na altura, ficamos a impressão de que se conseguira uma feliz ligação ente o filme de monstros, afinal de contas tão caro ao autor de O Labirinto do Fauno, Hellboy ou Crimson Peak, e ainda um requinte poético e romântico capaz de agradar aos estúdios e também a um público mais mainstream. Ainda assim, mantendo o estilo muito próximo da série B, atém de uma homenagem ao cinema clássico e, geral e, e particular, A Criatura do lago Negro, o tal filme de culto de meados dos anos 50.

Del Toro concretiza assim o seu sonho, com aquele que o próprio considera na nossa entrevista o filme mais conseguido. Na nossa escolha, entendemos mais calhada a realização, já que se trata de um trabalho irrepreensível que joga com época, efeitos especiais visuais notáveis, pleno de poesia e referências cinéfilas, bem como um certo estilo musical entre as linhas, embora assumindo-se como um série B durante a Guerra Fria. Isto para além de impor um romance (e algum sexo) entre um homem-peixe e uma muda (Sally Hawkins, que muitos antecipavam a Taça Volpi). Na verdade, demasiados elementos que acabam por contar assim para o melhor filme. Nada a dizer.

Samuel Maoz

O mesmo se diga para Foxtrot, do israelita Samuel Maoz, vencedor do leão de Ouro em 2009, com Líbano, o tal filme em que a guerra era vista sempre do ponto de vista do interior de um tanque. Já se disse que esta é agora uma pequena unidade militar pela família, no fundo palavras recolhidas na nossa entrevista com Maoz, que nos explicou também que esta história sobre a notícia que os pais recebem sobre a morte do filho militar fora inspirada numa situação de “quase morte”, ou acaso furtuito, por parte da sua filha, e que o fez pensar na forma e no acaso como sucedem as coisas. A premissa vai busca-la à dança foxtrot, na sequência em que se dança uma sequência em que se termina sempre no lugar onde se começou… Talvez uma forma de explicar como certas coisas insistem em não mudar. Pelo menos, em Israel.

Jusqu’à La Garde, do estreante Xavier Legrand

Chegamos a Xavier Legrand, com o seu filme de estreia que esteve guardado para explodir no último dia do festival. A disputa da custódia e guarda dos filhos menores que opões um casal divorciado em Jusqu’à La Garde acaba por levar o prémio de realização, bem como o Leão do Futuro, o prémio para a primeira obra, a única na competição principal. Por aqui, temos até algumas reticências, apesar do impacto que o filme nos deixou.

Les Bienheureux, de Sofia Djama

Se a primeira obra não deixa muitas dúvidas, embora houvessem filmes na secção Orizzonti com mais gabarito – citamos por exemplo, um apequena obra-prima chamada Les Bienheureux, da estreante realizadora argelina Sofia Damaz, que nos preencheu por inteiro. Onde se aborda a modernidade da classe média local, com as suas divergências num país em que é também difícil assistir a mudanças, e onde as pessoas são forçadas a improvisar ou a assumir alguma conivência com o regime dominante.

Charlie Plummer, em Lean on Pete

Mas vamos a Legrand e ao filme que parte de um estilo quase documental para terminar numa cena de puro horror que nos recorda Jack Nicholson em Shinning, de Kubrick. É um crescendo quase asfixiante em que as diversas zonas cinzentas entre o ponto de vista da mãe, do pai e dos filhos que se recusam a estar com o pai, operam uma coesão que ajuda a dar consistência à obra. Aí calham assenta bem a prestação entre o pai (Denis Ménochet) e, especialmente, o filho (Thomas Gioria), uma verdadeira revelação, e se calhar a merecer mais o prémio Mastroianni, de ator revelação, do que Charlie Plummer, no escasso Lean On Pete.

Charlotte Rampling e Kamel El Basha, reis de Veneza

Charlotte apareceu também no final para trocar as voltas a quem já tinha as suas contas mais ou menos ordenadas. É sempre bom quando assim acontece, até porque ajuda sempre o júri a desviar-se daquilo que aparece mais ou menos decidido por outros. E no plano interpretativo, o que existia a poderosíssima Frances McDormand, a lá está, a nossa escolha, nesse tremendo Three Billboards, a vergar a comunidade masculina a seus pés, mas havia também quem defendesse Sally Hawkins, como referimos, ou até mesmo Jennifer Lawrence, no mais do que controverso Mother!, cilindrado pela crítica não anglo-saxónica que endeusou Aronofsky. Aliás, a mesma Jennifer foi a atriz que se recusou a aceitar jornalistas de nacionalidade russa por discordar da política desse país. Como se os EUA, ou a política beligerante do seu Presidente, não os convidasse a ser mais cautelosos. Mas adiante.

Charlotte Rampling

Temos Charlotte. Imperial como sempre. Se bem que neste filme do italiano Andrea Pallaoro, interpretado em francês, o que parece ser uma tendência de parte do cinema italiano em renunciar á sua língua, seja um daqueles filmes que cada vez mais se entranha em nós. E é tudo Charlotte, a mulher de quase 70 anos, que trabalha como criada numa casa de boas famílias. Ela que se refugia numa vida pacata e serena, como forma de esquecer o homem que foi acusado de abusar de crianças, seja expressão teatral, a natação, a cuidar de um garoto cego, do cão… É a dor no seu olhar que também conta. Mas Rampling é também a atriz de 45 Anos, em que nos deu talvez a sua maior interpretação e a respetiva nomeação ao Óscar num papel magistral de um realizador que também passou este ano pela Biennale, Andrew Haigh, o realizador de Lean On Pete.

Kamel El Basha, em The Insult

De Kamel El Basha, em The Insult, abstemo-nos de comentar, pois não vimos esse filme, embora registámos o elogio de muitos, embora nunca se referindo ao ator. Até porque nesse particular até tínhamos escolhas muito dignas, como Ethan Hawke, a nossa escolha também desde cedo, como o sacerdote protestante e atormentado de First Reformed, de Paul Schrader. O tal que ao tentar dissuadir um ambientalista radical das suas tendências suicidas acaba, ele próprio, por assumir o gesto radical de se atar com um colete de explosivos e, depois, por um círio de espinho em redor do corpo. Uma imagem crística à procura da sua redenção pelos seus pecados, a fraqueza da bebida por ter perdido um filho, mas também dos pecados do mundo pouco ambiental. No fim, fica mesmo a pergunta: poderá Deus perdoar-nos?

Martin McDonagh

É claro que o guião assinado por Martin McDonagh em Three Billboards é um portento de energia contagiante, embrulhando questões éticas relevantes, como os abusos impunes cometidos nos estados sulistas. De resto, não nos lembramos mesmo de um argumento tão bem trabalhado, que consegue falar de coisas sérias, como nos relatou na nossa entrevista, embora sempre envoltas por um sentido de humor enérgico e contagiante. De resto, as inúmeras salvas de palmas e gargalhadas da sessão de imprensa deixavam entrever o efeito que acabou por resultar no filme com a preferência da imprensa e também do público selecionado pelo órgão oficial do festival, nos diários da revista Ciak. Talvez por isso, este prémio de escrita saiba a pouco. O filme é mais do que isso. Portentosa Frances McDormand, portentoso Sam Rockwell, bem como Woddy Harrelson.

Charlie Plummer, em Lean on Pete

Outro dos filmes que perdemos foi o western australiano Sweet Country, de Warwick Thornton. Sim, o serviço do júri Fipresci que nos forçou a ver todos os filmes da semana da Crítica, onde vimos muitas deceções, de realizadores estreantes, e algumas surpresas, como já foi citado (Les Bienheureux). Nada a dizer como o Prémio Especial do Júri, vá lá, uma espécie de terceiro lugar. Por fim, também a entrega do prémio Marcello Mastroianni a Charlie Plummer, no algo lento e inconsequente Lean On Pete, acaba por premiar um filme sem estaleca para prémios. Já agora, a prestação de Plummer, embora apreciável pela contenção de um jovem sem referências familiares que se afeiçoa à emoção com um cavalo de corrida, fique apenas pelo domínio da curiosidade.

Mektoub, My Love

Deixamos apenas a nota de protesto pela ignorância voluntária daquele que considerámos o melhor filme do festival, Mektoub, My Love, de Kechiche. De certa forma a assinar por baixo algumas das críticas de um certo excesso de sensualidade física feminina, muito comentada pela imprensa anglo-saxónica. Talvez que Annette Bening, em vésperas de partida para Toronto para promover o seu filme muito aguardado, Film Stars Don’t Die in Liverpool, uma eventual premiação de Mektoub pudesse vir a ser menos compreendida. Assim se evitam embaraços. No entanto, vale a defesa do filme que celebra o amor e a liberdade, e que colheu também a preferência de vários jornalistas italianos e internacionais. Mesmo que não seja consensual, há uma liberdade e vontade tão forte de amar e ser amado, de descobrir e ser descoberto que dos deixou ligados ao ecrã durante estas três horas certas.

E agora, os óscares?

Sim. De Veneza saem já algumas indicações precisas que poderão vir a ser posteriormente defendidas pelas associações de críticos americanos. The Shape of Water parece-nos incontornável, até porque produzido pela Fox Searchlight. Muit propvavelmente, para Melhor Filme, realizador, para além das interpretações e efeitos especiais. Three Billboards dificilmente escapará também a esse crivo, com a distinção de filme, realizador, argumento e atores. Estes de certeza. E pode mesmo dar-se o caso da imprensa americana embandeirar em arco Mother!, considerado por muitos como um dos piores filmes de Veneza74.

 

Palmarés Veneza 74

Leão de Ouro – The Shape of Water, de Guillermo Del Toro

Leão de Prata – Grande Prémio do Júri – Foxtrot, de Samuel Maoz

Leão de Prata – Melhor Realização – Xavier Legrand, em Jusqu’à La Garde

Taça Volpi – Melhor Atriz – Charlote Rampling, em Hannah

Taça Volpi – Melhor Ator – Kamel El Basha, em The Insult 

Melhor Guião – Martin McDonagh, por Three Billboards Outside Ebbing Missouri

Prémio Especial do Júri – Warwick Thornton, por Sweet Country

Prémio Marcello Mastroianni – Charlie Plummer, por Lean On Pete

Leão do Futuro – Jusqu’à La Garde, de Xavier Legrand

 

Palmarés Orizzonti 

Prémio Orizzonti – Melhor Filme – Nico, 1988, de Susanna Nicchiarelli

Melhor Realização – Vahid Jalilvand, Bedoune Tarikh, Bedoune Emza

Prémio Especial do Júri – Caniba, de Lucien Castaing-Taylor, Verena Paravel

Melhor Atriz – Lyna Khoudri

Melhor Ator – Navid Mohammaddzadeh

Melhor Curta – Céline Devaux, por Gros Chagrin

Melhor Guião – Dominique Welinski e René Ballesteros, por Los Versos Del Olvido

 

Melhor Filme Restaurado – Idi I Smotri

Melhor Documentário sobre Cinema – The Prince and The Dybbuk

 

Prémios VR

Melhor VR – Arden’s Wake

Melhor Experiência em VR – La Camera Insabbiata

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