Não se sabe quantos ensaios houve dessa saída das fábricas, se algum. Só se sabe que nascia assim uma nova arte, o cinema. Depois da invenção do cinematógrafo, os irmãos Lumière, Auguste e Louis, deram espaço ao seu sonho através de uma pequena indústria de pequenas curtas metragens, cujo limite eram os 55 segundos imprimidos em 17 metros de película de 35mm. Fala-se num impressionante acervo de 1500 filmes, num monumental trabalho de restauração em 4k que o Instituto Lumière tem estado de desenvolver. Sim, Lumière! A Aventura Começa é o evento cinema do ano.
Hoje, mais de 120 anos depois, há uma nova luz que dá brilho a esta monumental abertura de portas e que permite ver, talvez como na altura, o resultado de tantos filmes que adquirem agora um brilho e um realismo desse restauro. Mas não só, é a seleção de Thierry Frémaux, delegado-geral do Festival de Cannes e Diretor do Instituto Lumière, tal como nos explicou na entrevista que nos concedeu, e, sobretudo, o comentário que lhes confere essa espessura de filme que supera largamente o efeito de curta e se interliga num maior exercício do grande cinema que dava os seus primeiros passos. Tal como a menina que começa a andar e que o off de Frémaux classifica como o primeiro filme de suspense, será que vai cair ou não?, assim se percebe a intenção por detrás das imagens, algumas delas pueris, a permitir essa leitura mais vasta. Muito mais vasta, já que toda a intenção que Frémaux passa em revista a montagem dos excertos de 108 filmes agora no formato de um único documento em longa-metragem, finalmente a permitir-nos essa visão adulta. Sobretudo se pensarmos que o cinematógrafo não tinha visor, o que exigia essa visão global para enquadrar no melhor plano feito “às cegas”.
Ainda assim, assumimos este registo didático de Frémaux – embora longe de o cinema Lumière para totós – como uma revisão de um cinema que talvez para muitos não tivesse tido a oportunidade de ser desfrutado numa cópia irrepreensível e acompanhado de outros elementos, como a banda sonora irrepreensível de Camille Saint-Saens, que trazem ao grande público o conhecimento do poder da linguagem cinematográfica de Louis e Auguste Lumière, bem como dos seus inúmeros operadores de câmara. É aí que percebemos o papel da mise em scène e o papel do realizador, a composição do plano e o local ideal para colocar a câmara, a profundidade de campo, da intenção dos travellings à poesia das imagens. Isto para além da exploração dos diversos géneros, da tal noção do remake e até o uso atual que damos aos drones, tão bem ilustrado pelo travelling em ascensão dado pela câmara colocada num balão que sobe. Ao fim e ao cabo, as mesmas considerações do cinema de hoje, bem mais de um século depois. Temos até a comparação ao cinema bem mais moderno, com um lançamento à água de um barco num tom igualmente épico como Titanic, de James Cameron, ou outras referências a John Ford, Kurosawa, Ozu, Spielberg…
Como ver hoje este filme Lumière!? Talvez a ideia de examinar estes menos de 90 minutos dentro de uma qualquer teoria da história da arte do cinema possa desvirtuar um pouco a intenção mais pedagógica e de Thierry Frémaux, em retomar parte do espanto ao captar as imagens dos irmãos Lumière. Até porque é um acervo que se redescobre, muitos destes filmes pela primeira vez por muitos de nós, pois não estavam sequer disponíveis. Por isso mesmo, dizemos bravo Thierry! Sim, a aventura já começou. Obrigado por este pequeno tesouro.