Fernão Mendes Ponto, o português coletivo
Por: Paulo Portugal
Tudo tudo, com o orçamento da bagatela, dada a escala e ambição do projeto, de um milhão de meio, gerido com a habitual eficácia por Alexandre Oliveira, de quem Botelho diz ter sido produtor, mas também bombeiro se fosse necessário. Por isso, uma certa confiança permite-lhe esperar que a receita daqui ou do estrangeiro compense isso. O filme irá resistir ao tempo e todos os anos será visto. E pingará qualquer coisa, acrescenta seguro, durante a conversa ao Insider. De resto, uma entrevista após o set visit que fizemos à rodagem nos estúdios Contracampo, em Loures, para seguir uma das cenas fulcrais com a sentença japonesa após um acidente com uma espingarda disparada acidentalmente por um jovem nipónico filho de um senhor feudal.
Peregrinação aí está, numa visão necessariamente sintética e seletiva deste alucinante mundo de aventuras e crónica de viagens. Seria um blockbuster inevitável se fosse filtrado pelos olhos e pelo modo de produção de Hollywood. Pelos olhos de Botelho será sempre uma compreensão tão ambiciosa quanto sintética. Tal como o seu cinema, de acordo com o credo que um velho mestre do cinema português um dia lhe segredou: se não puderes filmar bem toda a carroça, filma bem, pelo menos, a roda. O mestre era Manoel de Oliveira e a tal “roda” é a que gira em O Dia do Desespero (1992).
A ideia da roda, se quiseres, está no início, explica. A ideia é filmar o essencial. Nunca filmar o que está à volta. No fundo, tentar a abstração. Não era o que o Hitchcock fazia?, atira. E fazer que o texto seja a verdade. É claro que muitos irão falar desses quadros desconexos, nessas diversas aventuras à procura da unidade. Botelho até sabe disso, mas opta por encarar essas vinhetas como a montagem de atrações que vem do Eisenstein. É o cinema como ligação de atrações. Mas ao mesmo tempo o essencial do ascetismo. Quer com isto dizer que opta pela simplicidade, e pelo economicamente possível. E ao mesmo tempo não trair a verdade do texto, completa. Aqui não é uma adaptação, são excertos, diz. De várias citações. Depois brinquei com aquela história do heterónimo. Temos os dois lados humanos, a brutalidade, o roubo, a comiseração e a humanidade, portanto, uma coisa coletiva e outra individual. Se ele tomou liberdades, eu também posso.
O Indiana Jones português?
Fernão Mendes Pinto como o Indiana Jones português ou a Peregrinação como A Odisseia? Talvez sejam exageradas as comparações. De resto, João Botelho confessa sentir-se mais próximo de Emilio Salgari, embora também com o enorme défice de credibilidade devida que importa repor. Botelho sabia disso quando avançou para esta “impossível” adaptação das mil páginas e das mil e uma aventuras do nosso grande livro de viagens e aventuras, conhecendo bem os limites naturais de tal ousadia. Por isso, fiel ao seu cinema de dar força ao texto e de captar bem o essencial desembarca agora com a sua visão desse aventureiro que partiu para a Índia em busca de fama e fortuna, como refere Botelho nas suas notas.
Este filme tem várias camadas, refere. De resto, o realizador não tem dúvidas, Peregrinação é um filme de aventuras, é para toda a gente, insiste. Desde lodo, na primeira edição, datada de 1614, se elogiava que essa era uma história muito boa, cheia de muita variedade e novidade, porque esta, segundo diz o filósofo, deleita e tira o fastio… Cláudio da Silva, lembramo-nos da sua intensidade em O Filme do Desassossego, quando foi Bernardo Soares, aquele que Botelho diz não piscar os olhos durante cada cena, domina a cena como Fernão Mendes tal como o corsário António Faria.
João Botelho avalia Peregrinação como um manancial de informação, ancorado num texto notável, que foi muito escondido, e que nos trás a descoberta e a fantasia, o encontro de novas culturas, animais, plantas e novos mundos. Desde logo, pela singela adaptação que Aquilino Ribeiro fez para jovens, onde já cria um heterónimo (https://www.fnac.pt/A-Peregrinacao-de-Fernao-de-Mendes-Pinto-Aquilino-Ribeiro/a280559) e aí aproveita a ideia do heterónimo que o ajuda na divisão do filme em três partes. É a primeira parte do livro, Eu (pobre de mim, desventuras e sucessos de Fernão Mendes Pinto) narrando a parte em que foi embaixador de escravos, torturado, no fundo, as coisas que lhe aconteceram. A partir de certa altura aparece o António Faria, o corsário, que mata e rouba, e ele põe-se de fora, passa a ser o narrador. Passa a ser Ele (o mal, António Faria, o corsário); depois, uma terceira parte Nós (os Portugueses, numa mão o crucifixo, na outra a espada), com aquela ideia dos jesuítas de matar em nome de deus. Uma vez mais, não há certezas de nada e muita ambiguidade.
O curioso é que esta divisão tripartida aparece numa altura em que Botelho já estava a fazer o filme. Isto foi feito aos pedaços, confessa. Se calhar foi o filme mais coletivo que fiz. Tal como a música de Fausto, Por Este Rio Acima (1982), que casa de forma admirável com o tema e as imagens do filme, mas que terá surgido ainda mais tarde. Depois as canções do Fausto (escuta-se O barco vai de saída, A guerra é a guerra, A ilha, O cortejo dos penitentes, Olha o fado e Navegar, navegar), mas algo que surgiu ainda mais tarde. Demorei um ano desde Os Maias sempre a trabalhar nisto. Mas tinha de ser, tinha de ser, insiste o cineasta. Percebe-se, pois esta música do início dos anos 80 parece ter sido feita de encomenda para este filme, fundindo assim os momentos de opereta de uma forma totalmente orgânica.
A realidade ou a lenda?
Curiosamente, o texto também não parece ter padecer de algum desgaste da História, já que publicado 30 anos depois da sua escrita, e de ter passado pelo crivo da Inquisição, permanece com uma tremenda atenção ao lado mais aventureiro e informativo do género. Não sei se é o texto dele, se foi alterado, ninguém sabe, diz. Depois tem uma introdução que acaba por ser também o programa do seu filme. No fundo, a tal associação de ideias que temos e que navega ao longo de vários episódios da vasta obra.
Para mim, o cinema é um modo de contar, refere. Sim, para o realizador de O Filme do Desassossego, o que interessa não é o que se passa, é o que se conta. Este filme é um tratado do modo de contar. Ele conta à mulher e às filhas, conta ao Rei de Espanha, conta na taberna, conta com vozes fora de campo. E há também a convergência musical. Os cantores também contam, admite, com a vantagem dos seus cantores se transformarem em atores maravilhosos. Eram cantores de música clássica e passaram a ser marinheiros, a atirar-se à água, passaram a ser atores. Isso permitiu-me progredir a narrativa. A ideia foi criar uma coerência para que todos os modos de contar fizessem um único, contassem uma história do princípio ao fim.
Das várias façanhas relatadas de Fernão Mendes Pinto estará também a chegada ao Japão, bem como a introdução das armas de fogo. O que, em rigor, pode manifestar alguma precisão de ter sido o primeiro ocidental naquelas paragens ou a levar as primeiras pistolas. Talvez por aí tenham crescido as brincadeiras com o seu nome, Fernão Mendes Minto. Mas não valerá a pena convocar aqui John Ford para precisar se valerá a pena dar mais relevância ao facto ou à lenda? Como aquela lenda que motiva uma festa anual numa ilha japonesa em que um marinheiro do século XVI transporta uma espingarda da época ao lado de uma menina por quem se apaixona. No fundo, uma aproximação demasiado evidente ao que mais tarde seria conhecido como Madama Butterfly, do Puccini. Lá está, neste caso também se imprimiu a lenda.