Conversa de café com Filipa Reis e João Miller Guerra em Lisboa, antes da partida dos realizadores de Djon África para Roterdão onde pela primeira vez um filme tuga concorre para o Tigre Hivos. Só ficou mesmo por provar o ‘grogue’ cabo-verdeano.
Escassos dias antes da primeira exibição de Djon África em Roterdão, o Insider sentou-se com Filipa Reis e João Miller Guerra, na pastelaria Mexicana, na Praça de Londres, em Lisboa, com o intuito de assimilar o processo criativo de Djon África, a estreia do duo de realizadores no formato de longa e, já agora, também em ficção. Uma estreia talvez, se bem que os documentários anteriores pareciam já ficcionar uma certa vida real dos participantes. Juntos têm produzido um trabalho regular não só com a sua produtora Pedra no Sapato (que produziu a curta de Leonor Teles, Balada de um Batráquio, vencedora do Urso de Ouro em Berlim, em 2016), mas também com a produtora Vende-se Filmes, que ambos fundaram.
A história de Djon África é também, de certa forma, a de Miguel Moreira, ator não profissional e protagonista que soma já a quarta colaboração com Filipa Rei e João Miller Guerra. Ao longos dos anos de trabalho connosco, o Miguel sempre se habituou um pouco a fazer dele próprio, refere Filipa. Temos sido muito fieis à sua vida. De certa forma, esta proposta até foi um pouco estranha para ele, esclarece.
De certa forma, Miguel Moreira como que nos faz lembrar a personagem Ventura, omnipresente nos filmes de Pedro Costa. Não sei se é um Ventura, diz a sorrir o cineasta, confessando que não é a primeira vez que surge essa comparação. É apenas alguém com que nos sentimos muito bem. E que se sente tb muito bem connosco. De facto, também nós rapidamente nos deixamos seduzir por este jovem malandro, mas ao mesmo tempo atencioso, que se sente um estranho numa terra estranha, em Portugal, e que vai encontrar o seu destino na terra que é a sua, mas que terá de descobrir. E nos processo descobrir-se a si próprio. De resto, a abertura e ambígua da sequência final do filme deixa-nos matéria suficiente para reflexão.
Miguel iniciou este processo conjunto em Li Ké Terra, um documental de 2010 (vencedor do melhor documentário no Doclisboa), abordando a realidade desamparada de portugueses nascidos em Lisboa, filhos ou netos de cabo-verdeanos, embora a permanecerem numa situação irregular. Já aqui encontramos Miguel a viver com a avó e com um pai desconhecido, de resto, um tema transversal nos filmes rodados em conjunto, como na curta anterior Fora da Vida, vencedor do IndieLisboa,em 2016. Miguel colaborou ainda em Nada Fazi (2011).
Mesmo sem nunca terem ido a Cabo Verde, Filipa e João já conheciam bem a realidade dessa comunidade residente em Lisboa, de resto espelhada nos filmes produzidos em conjunto com Miguel Moreira, sempre num misto de partilha de vida e trabalho.
Da mesma forma, funciona a colaboração entre Filipa e João, como confirmaram na entrevista. Rita mais dedicada ao longo curso, à estrutura, João, aos pequenos detalhes. Também na nossa conversa foi assim. O ideal é que prestam atenção a coisas diferentes, como explica o João. Algo que acontece de forma muito natural. Tratamos sempre os dois das mesmas coisas, mas intuitivamente eu presto mais atenção a pormenores, enquadramentos, ao passo que a Filipa dá mais atenção a uma ideia de continuidade narrativa. É um jogo good cop bad cop, sintetiza sorridente.
A ficção do documentário
Depois de um conjunto muito seguro mais dedicado ao documentário de um acerta realidade social, percebe-se a vontade de crescer para a ficção. Esta foi, de certa forma, uma sequência lógica desse percurso, como confirma Filipa. Sim, foi uma decisão, uma vontade, sublinha, até porque ao longo do nosso trabalho fomos dirigindo-nos um pouco mais para a ficção. Se bem que aqui esse peso documental, ou essa intromissão de histórias atravessadas permaneça. Até porque o trabalho de Filipa e Miller Guerra rejeita compartimentos de género.
Um filme é um filme, diz, independentemente se ser documentário ou ficção. Temos muita vontade de arrumar tudo nessas gavetinhas. Isso a nós sempre nos interessou pouco. Trabalhamos sempre na fronteira entre as duas coisas, interessando-nos mais o processo e onde as personagens nos levavam do que no género. Até porque tinham vontade de sair dessa zona de conforto. De se por um pouco à prova.
Embarcam então nesta deriva de Djon África de Lisboa até cabo Verde, durante três meses e com diversos períodos, de acordo com uma narrativa definida por João Miller, embora com a colaboração de Pedro Pinho (e realizador de A Fábrica de Nada). Um certo caos descontrolado que trouxe uma certa magia á rodagem, explica-nos o realizador, com muito grogue à mistura, a bebida local, semelhante à poncha madeirense.
Apesar do desafio de marcar presença no IFF (International Roterdam Film festival), preparam já uma nova ficção, sem estar relacionada com Cabo Verde, mas com o norte do país. Depende do andamento dos projetos e dos financiamentos, explica a cineasta. Eu estou desejoso de fazer uma segunda longa metragem em ficção, confirma-nos João.
E porque não voltar de Roterdão com um prémio? Para nós era ótimo. É João quem o assume, embora Filipa comprove o entusiasmo com o olhar. O prémio tem de vir para alguém. Gostávamos muito, claro. Não pelo prémio em si, mas porque o que pode trazer ao filme.
Embaixada portuguesa em Roterdão
O festival de Roterdão está aí (de 24 de janeiro a 4 de fevereiro), con Djon África a juntar-se a diversas outras produções da Terratreme, como Tempo Comum, de Susana Nobre, na secção Bright Future, dedicada a jovens realizadores, Milla, de Veléria Massadian, A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho e Tudo o Que Imagino, de Leonor Noivo. Para além destes, há ainda a considerar a curta Miragem Meus Putos, de Diogo Baldaia, para além de Fátima, de João Canijo, o documentário de Teresa Villaverde, O Termómetro de Galileu, sobre o cineasta italiano Tonino de Bernardi.