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Eu, Tonya: o filme em que Margot Robbie se supera e reinventa o ‘white trash’

Tonya Harding rodopiou três vezes no ar e tornou-se na primeira americana a superar o ‘triple axel’, o mais complicado movimento de patinagem artística naqueles anos 90. Só que entre o estrelato viveu sempre também a infâmia ter sido acusada de infligir na sua rival Nancy Kerrigan um doloroso golpe no joelho, destinado a afastá-la dos jogos Olímpicos de 1994. Amaldiçoada pelos media, haveria de renascer das cinzas uma vez mais para tentar ainda uma carreira no boxe.

Se achavam que faltavam elementos de interesse para um filme sobre patinagem artística, aí está. Só que esta informação é ainda tratada de uma forma de humor ácido pelo australiano Craig Gillespie, num filme que apresenta o caso como se tratasse de um falso documentário impregnado de humor negro, ainda que penetre bem fundo no tópico do abuso, não só psicológico e de exploração pela mãe, mas também pelo abuso físico e violência doméstica pelo marido. É tão incrível a história de Harding, que levou mesmo o cantor Sufjan Stevens a escrever uma canção sobre ela.

Depois temos outro trunfo, que foi a escolha de Margot Robbie (sim, a Harley Quinn de Esquadrão Suicida) para o papel de Tonya. O resultado tem de se ver no ecrã, mas garanto já que ficamos de boca aberta com esta prestação muitíssimo merecida para a sua primeira nomeação ao Óscar e, claramente, o melhor papel da sua carreira e aquele que a tornará numa estrela classe A. E o Óscar só não seria seu porque existe uma senhora chamada Frances McDormand no filme Três Cartazes à Beira da Estrada. Mas existe a escolha genial de Allison Janney para encarnar a mãe fumadora compulsiva, exigente ao ponto da violência e fria como o gelo, mesmo quando necessita do apoio artificial de oxigénio. Por esse papel nos limites, o Óscar de atriz secundária não lhe deverá falhar.

É mesmo incrível a história de Tonya Maxene Harding, uma menina white trash de Oregon, que começou a patinar aos três anos de idade, por força da mãe austera LaVona Golden, que apesar de sofrer de asma e gripe, também se deu bem na caça, a guiar carros em drag race ou até a ajudar na mecânica de carros na garagem do pai, a servir à mesa ou a coser os seus próprios vestidos para a competição de patinagem, já que não tinha dinheiro para compra-los prontos. No fundo, sempre um plus ativo na ajuda económica à família. Aliás, foi a própria a confessar que aos sete anos, os abusos físicos e psicológicos já faziam parte da sua vida.

Eu, Tonya é daqueles filmes que exalta o espírito da tenacidade americana e a vontade indómita de vencer, mas cuja seriedade é filtrada por uma camada de irresistível ironia. Desde logo pelas personagens, que vão pontuando com sibilina ironia alguns pedaços da sua vida de abusos. Um deles é o marido Jeff Gillooly, no convincente Sebastian Stan (o ‘Soldado do Inverno’ da saga Capitão América), que nos é apresentado como um tipo frouxo e inseguro, mas que saberá exercer sobre a sua namorada o machismo tradicional. E depois, só depois, teremos a tal rivalidade entre a Nancy Kerrigan, que haveria de conduzir ao tal escândalo ocorrido em 1994, em preparação para as Olimpíadas.

Só que esse empenho radical para se superar do ponto de vista atlético, e tentar alcançar o derradeiro objetivo, o tal ‘triple axel’, uma pirueta tripla no ar, acabou por sair sempre deficiente na postura, na graça, ou seja, no plano artístico. Ou simplesmente, a educação e a linhagem, o que sobrava na rival Nancy Kerrigan (Caitlin Carver) e que era muito valorizado pelos juízes. Em todo o caso, esse feito acabaria por concretizar, tornando-se na primeira americana a fazê-lo.

Isto antes dos tablóides a crucificarem pelo tal suposto envolvimento na encomenda da lesão infligida no joelho de Kerrigan, afinal de contas, arquitetada pelo marido durante o treino para os Jogos Olímpicos de 1994. Mas é também a sua determinação e energia tremendas que a levaram a reerguer-se diversas vezes, a superar a violência do marido e a superar-se mesmo quando acabou a carreira e ainda tentou a sua sorte num ringue de boxe.

Se fosse tratado com realismo documental, provavelmente este Eu, Tonya não teria metade da graça e não seria sequer o grande filme que é. Vale ainda como registo sobre aquela América populista e white trash que nos deu Trump, embora com essa tal ironia que diríamos mais próxima de um episódio dos Simpsons do que um filme made in Hollywood. Por isso, podemos até perguntar quem é que conta realmente a verdade nesta história? Só que é mesmo a própria personagem de Tonya quem assume que a verdade não existe, é tudo treta (no original chamam-lhe bullshit).

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