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Reportagem Multimédia: O coração da revolução

No Intenso Agora
O cinema-ensaio de João Moreira Salles
O jovem usa o braço como catapulta e parece querer atirar a revolta contida para longe (Paris, Maio de 68).

 

Não é um filme, não é um documentário. É um essay analítico sobre o poder que o tempo confere às imagens em movimento. João Moreira Salles parte do home movie caseiro captado pela mãe durante uma viagem à China para abordar o movimento revolucionário de Maio de 60, em Paris, o olhar furtivo na ressaca da Primavera de Praga. Ou até o eco ensurdecedor disto tudo na atualidade, a partir da revolta estudantil de 2013 no Brasil. 

É essa premissa de interrogar a verdade das imagens, de as especular à maneira de Chris Marker, que se abrem novos campos de interrogação, investigação ou interpretação. É por tudo isto que João Moreira Salles, mesmo sem ter filmado um frame, toca a genialidade No Intenso Agora.

 


Foi no cinema Ideal, em Lisboa, que falámos com João Moreira Salles a 22 de março de 2018. E, se afinal de contas, o filme fosse o pretexto para redescobrir a sua mãe?
No cinema Ideal, com Cíntia Gil, do DocLisboa, em março de 2018

 

 

 “Ela em vez de negar o que vê, aceita e se encanta; isso tocou-me bastante”

 

 

 

A ENTREVISTA

 

“Nunca fomos insensíveis ao que se passava em nosso redor”

Depois de vermos No Intenso Agora é natural que fiquemos com uma vontade insaciável de procurar saber mais, sobre o autor, sobre esta vontade de interrogar as imagens reais do passado e essa força nova que o tempo lhes imprime.

Eu não conheço essas pessoas, confessa João Moreira Salles, nos primeiros minutos do seu filme-ensaio. Refere-se a imagens amadoras de momentos de vida, de mulheres que riem para a câmara, em Praga, durante a o período da Primavera de Praga, ou um quatro familiar de uma família brasileira, em que uma menina dá os primeiros passos e à medida em que avança, a babá que a ajudara recua e sai de cena.

Mas é nas imagens. já coloridas, que se seguem que Moreira Salles coloca o seu foco. Ao contrário das anteriores, a voz sabe que as filmou. Foi a mãe dele, Elsa Gonçalves, que as captou durante uma viagem que fez com o marido, o diplomata Walter Moreira Salles, à China de Mao, em plena Revolução Cultural,paga por uma revista francesa de arte.. Eram diletantes, atrás das belezas do país… 

A gente nem sempre sabe o que está filmando…

Claro que depois de seguir este documento tão rico, e da troca de impressões com o público nessa sessão integrada do festival de San Sebastian, impunha-se saber ainda mais.

Como surgiu a vontade de fazer este documentário, sobretudo dez anos depois de Santiago?

No final e Santiago fui atrás de imagens de família que precisava e encontrei numa caixa esses rolos de 16mm do material que a minha mãe captou na China, que ficaram na minha cabeça, mas como não sabia bem como usar isso acabei não usando. Entretanto, encontrei o artigo da revista que ela escreveu sobre a viagem, e é esse que é lido ao longo do filme.

O que mais o impressionou nesta descoberta?

O que me mais me impressionou foi a alegria dela, a vitalidade. Como estava alinhada com a vida, com vontade de viver e ver as coisas, a curiosidade. Uma curiosidade que ela foi perdendo ao longo da vida. Isso impressionou-me muito porque eu conheci a minha mãe já triste e ficando cada vez mais triste. Aquilo ficou na minha cabeça. Entretanto, fui-me aproximando de 68, porque a gente morava em Paris nessa altura. O meu pai tinha sido ministro do Jango, do Presidente Jango (Jean Goulart) que foi deposto. Entretanto fomos para Paris. E aí comecei a ler sobre 68 e identifiquei uma semelhança nessa dificuldade de viver depois da grande alegria.

Para além do aspeto pessoal, e familiar, não é também um pouco isso que se passa hoje? Como viver depois de uma grande alegria?

Certamente, é o que se passa hoje no meu país. Em 2013 teve um grande movimento de massas, as pessoas foram para a rua, reivindicaram um estado mais eficiente, melhores serviços públicos, menos corrupção. E aquilo acabou se antecipando. A gente tem hoje um governo que é terrível, semi-democrático. Tem uma sensação de ressaca política de 2013 na geração que viveu no pensamento de 2013 que e muito semelhante ao processo de não saber como seguir em diante, como recomeçar. De um modo gera isso está ligado à vida.

O Cohen-Bendit em 68 também parecia ter plano, não é?

Eu acho que o Cohen-Bendit não se encaixa nesse perfil, porque o CB teve a inteligência de se reinventar, de não querer voltar para o passado, de dizer que 68 aconteceu naquele momento e não se pode reproduzir e que é preciso se engajar nas novas lutas. E ele fez isso. Foi das primeiras pessoas que se envolveu na luta ambiental, ele tem uma vida. A armadilha é ficar preso à luta do passado. É reviver o que é um cadáver. E o filme é isso, uma reflexão sobre a intensidade de se reconetar com a vida.

Há um aspeto interessante na sua vida, no seu percurso. É que no fundo nasceu num berço de ouro, mas apesar de tudo conseguiu, bem como o seu irmão (Walter Salles) desenvolver uma forte consciência social, um pouco fora desse ambiente. Como é que se deu esse processo e como é que funcionou essa tua ligação com o Walter?

Nós somos quatro irmãos e nos damos todos muito bem. Somos uma família muito unida, todos os irmãos são muito unidos. Mas ao Walter devo a profissão, porque me formei em Economia, não tinha nenhuma vocação clara, mas sabia que não iria trabalhar em Economia, no mundo dos negócios. Então o Walter me convidou, assim que eu deixei a faculdade, para ajudá-lo a montar uma série de televisão. Eu fiz o roteiro e o texto, demonstrei uma certa habilidade em juntar as coisas. Aí, no ano seguinte, o Walter foi convidado para fazer uma série na China – ele já queria fazer ficção -, e sugeriu que eu fosse no lugar dele. E eu fui. Dirigi a minha primeira série para televisão, tonha 23, 24 anos de idade. E foi bem sucedida. Desde aí nunca mais parei, mas nunca foi uma vocação, como é para ele.

No fundo, trabalha mais como jornalista…

Isso. Criei há uns dez anos atrás a revista Piaui, que é onde eu dou batente todos os dias. Então, a minha relação com o Walter é muito próxima. A gente tem até uma produtora juntos, a Videofilmes, e nessa produtora existe uma espécie de divisão do trabalho, ele se ocupa de ficção e eu me ocupo do documentário, não só dos meus mas também de outras pessoas.

A exploração do real pode ser mito rica no Brasil, não acha?

É muito difícil você não saber o país onde você vive, quando você nasce num país tão desigual como o Brasil. A presença da desigualdade é muito visível, principalmente numa cidade como o Rio de Janeiro. Em São Paulo é um pouco diferente porque a pobreza está excluída, ela vive na periferia. No Rio de Janeiro a proximidade não dá para ignorar. É preciso ser cego, insensível, para não perceber que há uma questão que é grave.

Não se pode olhar sempre para o lado, certo?

No Rio se você olha para o lado, olha para o desigual, se olha para o alto olha para o desigual, só olhando para o mar é que não vê o desigual. Por isso as pessoas mais ricas moram de frente para o mar… (riso irónico) É claro que vivendo no mundo do cinema essa questão é muito viva. O cinema é um meio de pessoas que discutem essas questões. E a família também. Essa foi sempre uma questão discutida em casa, com os pais. Nós nunca fomos insensíveis ao que se passava em nosso redor.

Checoslováquia, Paris, Brasil… Esta ligação ao que se passava nos anos 60 é um fascinante trabalho de ligação com as imagens que já vinha de trás?

É, meu filme é um trabalho sobre imagens de arquivo. Eu não filmei nada.

É um trabalho, um estudo e introspeção sobre o significado das próprias imagens.

Mas sem dúvida nenhuma. Nesse sentido, é um filme próximo de Santiago. Um filme que nasce quando começo a indagar porque é que eu filmei como eu filmei.

Isso já é um trabalho de jornalista!

É um trabalho sobre a matéria, sobre o documento. Porque é que o documento é como ele é? Posso confiar, não posso confiar? O que é que ele está me dizendo que está escondido? O Santiago nasce quando eu me dou conta que o material bruto que precisa de ser tratado quase como um material de arquivo. Eu me esqueci das condições em que foi filmado, volto a ver três anos depois e coisas que eu não havia percebido antes fazem com que o filme nasce. É essa constatação das condições em que o filme foi feito.

As imagens de arquivo de 68 passaram pelo mesmo processo?

Sim, o meu interesse era responder a determinadas perguntas. Por exemplo, como é que você filma numa democracia? Como é que você filma num regime autoritário, como é que filma num regime totalitário? O que você pode dizer da imagem, de um quadrado, do enquadramento, da lente que você usa, sem sequer saber o contexto, simplesmente olha para a imagem e você pode deduzir coisas a respeito do contexto político em que elas foram feitas. As imagens de Paris foram todas feitas de perto, porque não há medo, não há risco. A polícia pode bater, mas ela não vai te matar. Na Checoslováquia é tudo de longe, escondido por detrás de janelas, porque essas são as imagens produzidas em regimes totalitários e autoritários.

Curioso. Mas há também as imagens de uma intensa alegria na China, captadas pela sua mãe, em que parece querer captar tudo com a câmara num frenesim…

É interessante porque ninguém tinha dito isso antes. Você tem toda a razão, é a câmara que vai para todos os lugares, você quer ver tudo. Exatamente. Nunca tinha pensado nisso.

Só para finalizar, gosto muito como o filme acaba, e acaba com um fado.

O filme nasce por causa do fado.

É? A sério?

Eu ouvi esse fado há quinze anos atrás e ficou-me na cabeça. É preciso fazer um filme que tenha esse fado Não Quero Rosas Vermelhas, da Maria Alice. E com a música do Rodrigo Leão porque eu sempre gostei muito do Madredeus, sempre gostei muito dele e tem um CD que se chama Cinema, que é uma maravilha, decidi procurá-lo, ele foi muito gentil e o filme ganhou o prémio de melhor trilha sonora no Festival de Cinema do Real, onde ganhou o melhor documentário SECAM, a trilha sonora e o prémio das bibliotecas. Mas a trilha sonora me deixou muito feliz. E eu vou passar no DocLisboa. Vai ser a primeira vez que vou mostrar lá e vou ficar muito feliz.

 

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Ouça na íntegra a entrevista ao realizador João Moreira Salles por Paulo Portugal. 

A CRÍTICA

A Revolução… e tudo sobre a sua mãe

João Moreira Salles não se considera cineasta ou documentarista, mas acima de tudo um jornalista de investigação mais empenhado numa atitude de reflexão estética. Ele não filma, ele estuda as imagens. E questiona: Como se filma numa democracia, como se filma numa ditadura?, uma interrogação e pesquisa que acaba por aliar a euforia da mãe em plena China revolucionária de Mao, ao turbilhão de Daniel Cohn-Bendit e a sua relutância em prosseguir uma revolução em Maio de 68, ou até a opressão soviética em Praga. Assim mesmo, No Intenso Agora.

Dez anos depois do magnífico Santiago, sobre o mordomo da casa de família dos Salles, João Moreira regressa a um novo estudo ancorado numa base pessoal. Depois de ser apresentado em estreia mundial no festival de Berlim, na secção de documentários do PanoramaNo Intenso Agora foi distinguido em Paris no Cinema do Réel, com prémio para a melhor banda sonora de Rodrigo Leão. Passou entretanto pelo festival de San Sebastian, onde tivemos ocasião de entrevistar João Moreira Salles., antes ainda de passar também pelo DocLisboa.

João Moreira não filmou um frame de No Intenso Agora. Apenas editou as imagens e procurou o seu significado no magnífico off que as vai pontuando. Mas essas são, afinal de contas, as palavras da mãe extraídas do artigo que publicou a propósito dessa viagem. Na verdade, Elisa Margarida Gonçalves (ou Elsinha, como lhe chamavam carinhosamente) era uma das grandes damas da sociedade e seguida por muitas revistas de estilo. Aqui se cruzam então os home movies da família, as imagens de arquivo do movimento estudantil de 68, a invasão russa em Parga, após a Primavera de Dubcek, vista por imagens furtivas, e até mesmo o eco da morte de um estudante no Brasil e a consequente revolta estudantil. O exercício é curioso, fascinante mesmo, ao longo do qual se analisa o significado das imagens, as suas circunstâncias. Um pouco à maneira de Chris Marker, e da sua maior referência, La Jetée.

Não será até preciso fazer uma grande análise para perceber como a motivação deste projeto acaba por estar paredes meias com uma tocante evocação familiar. Porque é ali, naquelas imagens frenéticas captadas pela mãe durante uma viagem turística à China revolucionária de Mao Tse Tung, que se percebe a felicidade que João não chegou a conhecer. Terá sido até essa find footage das latas de filme que encontrou no arquivo da família a motivar um dos estudos mais fascinante sobre o significado e o lado mais oculto das imagens. Eu conheci a minha mãe já triste, refere o filho na nossa entrevista; uma profunda tristeza que levaria Elisa Gonçalves, uma grande dama brasileira, mulher do embaixador Walther Salles e mãe de Walter Salles e dos irmãos Pedro Moreira Salles e Fernando Moreira Salles, a abandonar cedo demais esta vida.

Quem sabe, seria também para ela o significado do slogan estudantil de Maio de 68 sous les pavês, la plage (debaixo das pedras, a praia), a simbolizar a calma da areia que se encontra no solo depois arremessadas as pedras da calçada? Uma metáfora a que Salles confere a sua justaposição, até para contrastar a vida pacata que levava com a família nos jardins da embaixada brasileira em Paris.

Este filme nasceu de um fado, como nos revelou Salles no final da nossa entrevista, e acaba também com um fado e a banda sonora de Rodrigo Leão, de resto premiada no festival Cinéma du Réel, em Paris. Assim vivemos No Intenso Agora.

 

 

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