‘As Boas Maneiras’, de Marco Dutra e Juliana Rojas, que venceu o Prémio Especial do Júri em Locarno, integra secção Boca do Inferno no IndieLisboa
(entrevista originalmente publicada em Agosto durante a cobertura do Festival de Locarno)
Paulo Portugal, em Locarno
Conversamos com Marco Dutra e Juliana Rojas depois da sessão de imprensa de As Boas Maneiras. Algo que se impôs após o impacto deste filme que cruza de forma fascinante o género de terror, respeitando os géneros, mas cruzando-os com uma realidade profundamente brasileira, paredes meias com o simbolismo do Cinema Novo, mas também algum realismo filtrado com a poesia efabulada da Disney. Um filme ambicioso que ganha tanto com a fotografia do português Rui Poças e ainda a prestação incontornável de Isabel Zuaa, a revelar-se a verdadeira protagonista deste filme. Agora só falta vê-lo em Portugal.
Confesso que vi o filme sem ter qualquer informação, o que me permitiu vê-lo sem qualquer interferência. Por outro lado, gostei de saber na conferência de imprensa que esta história começou com o sonho do Marco. Gosto da ideia de sonho sobretudo quando estamos a pensar em cinema e em fantasia. Podes recordar um pouco esse momento, esse sonho?
MD – A história é muito engraçada porque, na verdade, eu não lembro exatamente do sonho, que tive em 2010. Na altura eu contei para a Juliana e começámos a falar sobre essa ideia. No fundo é já uma memória confusa, porque já é um pouco o que a Ju me contou do que eu contei para ela.
JR – Para mim ficou uma imagem muito forte. A ideia das mulheres que estavam meio isoladas, num lugar que lembrava um convento, um lugar abandonado que criava um bebé monstro. Essa situação original criou uma imagem muito forte para mim e a atmosfera também. Quando começamos a escrever o roteiro retornava a essa situação.
No fundo um sonho que ia ao encontro do cinema com alguns elementos de fantasia e horror que já tinham, certo? Isto numa história dividida em duas fases.
MD – Esse elemento veio cedo porque logo começamos a falar da ideia do lobisomem e da metamorfose, de como seria a gravidez e como seria o bebé. Sempre tinha essas duas fases da gestação. Por um lado, a gravidez e depois já com o bebé. Então, de certa forma, essa coisa de filme de terror tinha já no começo, mas as subtilezas e os detalhes foram vindo com o tempo.
É interessante também a forma como temperam a questão social e racial mesmo. Desde logo a personagem da Isabel Zuaa, a empregada negra, como protagonista, bem como o lado queer entre ela e Marjorie. Gostei também do elemento Disney que referiram…
MD – Acho que foi dos primeiros filmes que vimos.
JR – Tem a ver com o nosso imaginário afetivo do cinema. Tanto os filmes da Disney como os filmes de terror, eram os que a gente via enquanto era adolescente.
MD – Eram os que os nossos pais deixavam. E os filmes de zumbi, que víamos com sete anos.
JR – Foi o que fez a gente se aproximar na faculdade.
Por exemplo, eu tinha visto na noite anterior o I Walked With a Zombie, do Jacques Tourneur, e fiquei espantado pela proximidade que existe com o vosso filme?
JR – Sim, totalmente, os filmes dele e esse em particular foram uma inspiração. Também a questão da luz, como ele usa o espaço em off, como usa o som. Esses eram filme B, né? Ele tinha de ter soluções criativas, porque não conseguia fazer os efeitos, tinha muito pouco cenário e tinha de resolver, usar a iluminação. Por tudo isso foi uma inspiração muito grande para a gente. Sobretudo o conceito de luz e a linguagem.
Não queria deixar de falar na escolha das duas atrizes, pois acho que é uma solução incrível. Sobretudo a Isabel (Zuaa) que está a crescer imenso. Eu já vi o Joaquim, em Berlim, em que ela está magnífica. Como foi esse processo de escolha das duas?
MD – É interessante porque as duas fizeram teste. Mesmo a Marjorie que é uma atriz famosa no Brasil, com muita televisão, novelas, séries, teatro e também tem uma carreira de cantora. Lançou já três ou quatro discos. Não estávamos a pensar convidar ninguém sem ter uma discussão, um teste. A Isabel a gente não conhecia, mas também veio e fez o teste.
JR – Eu lembro-me da primeira vez que vi a Isabel, o meu assistente de direção trabalhou no Joaquim e disse que tinha essa atriz muito boa que é a Zuaa. Gostamos muito da foto dela, com uma presença muito forte. Lembro-me de que fiquei muito impactada quando a vi pela primeira vez. A química que teve com a Marjorie foi muito forte. Interagiram muito bem desde o início. Foi muito legar trabalhar com as duas.
Lembro-me de estar a ver o filme e perceber bem essas duas divisões do filme, quase me pareceram um filme e a sua sequela, no sentido que eram partes bem distintas, mas com uma continuação. Mas esse caminho foi logo assumido, creio.
JR – Sobretudo a questão das duas partes. Ter uma divisão que é quase simétrica, tanto em direção, de imagens, com várias coisas que rimam. É estranho porque em cinema as pessoas estão habituadas a um modelo de estrutura clássico, em três atos. Quando você pega uma história em dia partes, com um desenvolvimento interno, esse modelo não se aplica. Nesse sentido, é um filme estranho em vários sentidos. Não só pelo andamento e pela estrutura, como pela mistura de elementos de género. Fábula com musical, o horror, São Paulo e o Brasil. Ficou muito particular.
Esse é também um filme muito diferente do cinema que se vê no Brasil, arriscaria a dizer mais realista. Aqui rompe-se um pouco com essa linha narrativa. Arrisco até a dizer, poderá haver um certo horror escondido no próprio Brasil?
MD – Sim, é muito interessante, porque no Brasil teve uma fase do Cinema Novo que era muito alegórico, como em muitos outros lugares do mundo nos anos 60. A alegoria é uma coisa que a gente fala muito quando fala de Carnaval, do jeito que as pessoas se vestem na festa, na celebração que representa outra coisa. Então essa coisa das alegorias no Brasil é muito forte. Mas no cinema, a questão de género nunca foi prioridade. No entanto é um país que serve muito para esse tipo de representação simbólica, como no cinema do Joaquim Pedro de Andrade e do Glauber Rocha. No caso do nosso filme é a questão racial que é muito dissimulada. A gente tomou a decisão de definir a personagem Ana como branca e a personagem Clara como negra, em parte para que isso fosse uma questão visual e política no próprio filme. Por ser uma arte visual, o cinema tem uma carga simbólica muito forte. A gente não ignora isso. É claro que a gente não parte disso para criar, é sempre da história e dos personagens que a gente quer narrar. Mas isso também vem à tona.
O Brasil também vem permitindo essa clivagem de opostos tão fortes que permite esta exploração.
MD – Sim, está num momento quase explosivo. Estão cada vez mais claras as oposições.
Isso está a afetar o cinema também, não é? Gera uma necessidade criativa de afirmar essa vontade de expressão.
JR – A gente tenta representar a nossa época. Todo o filme é um registo histórico porque tem a ver com aquela época em que foi feito.
MD – Hoje no Brasil é muito difícil de evitar o conflito, as oposições estão muito claras. Um filme como o Aquárius, por exemplo, a personagem também tem um embate que é preto e branco, não há áreas cinzas. Isso reflete um pouco o que está acontecendo.
Têm alguma previsão de exibição e distribuição em Portugal de As Boas Maneiras?
MD – Seria incrível, mas ainda é cedo porque pouca gente ainda o viu. Mas exibir o filme em Portugal e estrear em Portugal, se for possível, seria maravilhoso.
JR – Mas chegam muitos filmes brasileiros a Portugal? Não é meio difícil?
Eu acho que este filme tem potencial de exibição comercial.
MD – Para além disso o filme tem a Isabel e o Rui (Poças, diretor de fotografia) que são duas figuras essenciais para esse filme e que são portugueses. Essa ponte (com Portugal) para nós é superimportante. A gente só não sabe quando vai acontecer, mas vamos lutar por isso.