Paulo Portugal, em Veneza
Não fumo cigarros, mas gosto de um puro, vai avisando em jeito de confissão a realizadora argentina enquanto se prepara para a nossa entrevista no mítico hotel Excelsior em Veneza. É que Zama, o seu novo filme, com fotografia assegurada por português Rui Poças, estava na secção oficial, embora fora de competição. Está agora em Lisboa, onde a cineasta assume o papel de Herói Independente.
Não foi a primeira vez que entrevistámos Lucrecia Martel. O primeiro encontro foi em Cannes quando Uma Mulher Sem Cabeça foi exibido na competição oficial. Recordamos uma mulher independente, com cabeça, que se assume e reflete em nós muitas perguntas. Que pensa connosco. Talvez algo que passe mesmo para os seus filmes.
Fascinante esta viagem temporal de Zama, em que lançou diversos desafios à fotografia de Rui Poças, e que nos propõe pistas para aflorar a arrojada adaptação do romance de Antonio de Benedetto, publicado em 1956. Desde logo pela forma como encara o tempo, seja no cinema como na vida, ou o movimento como sinal dela, por oposição à imobilidade. Mesmo que sejam sinais de natureza sexual, onde de resto possui uma visão muito pessoal.
Este filme demorou algum tempo a concretizar-se. De certa forma, acha que podemos relacionar esse trajeto com o de Zama?
Já perdi a conta às vezes que me fizeram essa pergunta. Até compreendo, mas não sei de onde vem a ideia que temos de fazer um filme a cada dois anos. Terá a ver com o mercado? Para mim é normal demorar sempre algum tempo em tudo o que faço. Será que o natural é o que faz o Woody Allen com um filme todos os anos? A atividade humana não tem de ser regida dessa maneira. Todas as ações humanas levam o seu tempo.
Desde logo existe o desafio do financiamento…
Em particular num filme feito na América Latina com todos os problemas de concretizar o orçamento. Para mim demorou cinco anos. Mas quando se vive num país do terceiro mundo conseguir dinheiro para fazer um filme assim não é muito tempo. Portanto, não vivo com a angústia de Zama. Já agora, acho que deveríamos castigar aqueles que filmam muito de seguida.
E porquê?
Porque há muitos filmes que não nos dizem nada. E depois, qual a razão? Será porque há muito dinheiro? Então pergunto porque há muito dinheiro para fazer filmes em alguns países e pouco em outros? Isso não quer dizer que haja mais talento, o que há é mais dinheiro. Esse é que é o problema.
Confesso que fiquei intrigado quando diz no filme que quer avançar pelo passado dentro. Será essa uma forma para descobrir também algo sobre o nosso presente? Ou existia outra razão para esta viagem ao passado?
Na América Latina é tudo muito difícil, embora ache que isso se passe um pouco por todo o lado. A história é a de um grupo de pessoas proveniente da Europa que chegou à nossa terra e subjugou um outro grupo. Só que a história de como isso sucedeu foi escrita pelo grupo que ganhou essa batalha. Por isso pergunto, como podemos ter a certeza desse passado, já que é um passado tergiversado? Nesse sentido, seguir para o passado requer a mesma imaginação que ir para o futuro. Isso não significa que não se dê valor à arqueologia, ao passado. No entanto, parece-me que na ficção é interessante esse movimento, digamos assim, desrespeitoso da História, até porque a História é muito perversa.
Será por isso que privilegia o lado mais realista do filme, em que o som é absolutamente límpido e vívido, em que nos parece quase que estamos a reviver esse tempo? O Rui Poças, o seu diretor de fotografia, disse-me que esse foi o seu maior desafio…
O Rui é encantador e consegue estar bem disposto, mesmo nos piores momentos. Na verdade, na construção de um filme, a única coisa que podemos constar para essa reconstrução é o som. Isto porque o som envolve a imagem numa superfície plana, mas que não vemos. O único 3D que existe realmente no cinema é o som. Se não temos este uso exaustivo do som, perdemos a oportunidade de submergir o espetador nesse mundo. Para além disso, há uma coisa muito importante: quando digo que esta cena é silenciosa. Mas será silenciosa porque ouves poucos sons ou porque não ouve aquilo que esperas? Quando essa expetativa é traída a atenção do espetador torna-se muito maior. Num filme como este em que a trama não é tão importante, então é necessário atrair a atenção de todos os estímulos. E a melhor maneira de atrair a atenção é contornando aquilo que o espetador espera. Diria que é um sistema construtivo.
Como encara o trabalho do Rui na fotografia? Acha que conseguiu interpretar a sua visão deste mundo e do som com imagens?
De todos os trabalhos técnicos da minha equipa esse é o mais travesti porque mudo sempre de diretor de fotografia. Isso é extraordinário. A ideia que trabalhámos foi não usar nem velas nem fogo porque são coisas típicas dos filmes de época. Ao retirar esse elementos que podem induzir uma opção temporal pretendemos que se obrigue o espetador a refletir de uma forma mais livre. Mas ele foi incrível e conseguiu encontrar energia para solucionar qualquer problema.
Qual foi o ponto de partida que seguiu em relação ao romance do Antonio de Benedetto?
É um romance muito interessante, onde o autor assumiu a linguagem do século XVIII, e XVII de Espanha, e com essas formas gramaticais inventou uma linguagem. É um livro muito criativo deste ponto de vista. Essa potência é um dos motivos porque quando o lemos temos vontade de fazer algo, um filme por exemplo.
É curioso porque para além do espanhol, usa também português e outros dialetos…
Eu uso diversos dialetos indígenas da zona de Chaco, o guarani, o português e o espanhol.
Eu nunca faço nada com uma intenção simbólica ou de metáfora. Não penso dessa maneira. Compreendo essa curiosidade pelo elemento da morte. Só que o que pensa que é morte pode ser apenas rigidez. Como Zama que acha que dever ser transferido e que deve ser reconhecido. Mas é essa rigidez que nos leva à morte. Se não existir uma atitude na vida e natural que morra espiritualmente. A rigidez está condenada ao fracasso. Este romance é sobre a espera, mas para mim é mais sobre a identidade como cárcere.
Talvez seja isso que nos conduz ao problema da identidade aflorado neste filme concorda? Como encara essa problemática?
Na Argentina fala-se muito do problema da identidade, até porque é um país de colonos e onde os indígenas foram mal tratados e não reconhecidos. Mas isso é o lado positivo da nossa cultura, esse lado de mistura. Porque a ideia de uma identidade é uma estupidez que só serve para defender as fronteiras.
Uma identidade que pode ser vista de diversas formas…
Como a identidade sexual, por exemplo. Eu sou a favor de que qualquer pessoa faça o que quer com o seu corpo, embora a atitude de muita gente dita progressista que quer ter uma identidade sexual através de hormonas e operações e assim obrigar o seu corpo a uma posição definitiva, sobretudo quando existe desde sempre a maquilhagem, as perucas, com as quais podemos modificar a nossa identidade sexual. Isso a mim parece-me uma demência, sobretudo porque normalmente ocorre onde existe o dinheiro para essa transformação médica. O que quero dizer com isto é que a identidade sexual deve ser algo móvel e não rígida. Isto porque somos organismos em movimento.
Isso pode ser bastante polémico, até porque sou gay. Sobretudo para alguém que queira fazer uma vida trans. Sou totalmente a favor de que todos façam o que queira. O que sou contra é que essa liberdade sexual seja feita à custa da medicina. Isso passa a ser apenas um privilégio de quem tem dinheiro. O que desejo é que as pessoas possam definir-se a todo tempo. É essa também a ideia do filme. Zama pensa que é alguém e fica preso a essa ideia.