O western marcou a sua presença em Veneza. Curiosamente, ou talvez não, pela mão da Netflix. Primeiro tivemos Ethan e Joel Coen a revelar uma certa mitologia do Velho Oeste, num guião alinhavado pelos dois irmãos e apresentado como um filme de histórias aos quadradinhos, ou episódios no apenas competente, embora aqui e ali divertido e sempre bem filmado, A Balada de Buster Scruggs, inicalmente ensado para ser uma série mas que permanecerá na versão mostrada no festival.
Respondeu depois o francês Jaques Audiard com The Sisters Brothers, embora aqui a apropriar-se do género para falar de outras coisas, como a introdução de uma certa visão positiva naquele mundo primitivo em profunda transformação. Digamos que os Coen dominaram o género, mas sem o enriquecerem. Isso fez Audiard, neste regresso depois do surpreendente triunfo em Cannes, em 2015 com Dheepan, ao apostar mais em conteúdo do que em estilo ou forma. Ainda assim sem impressionar verdadeiramente.
Em Buster Scruggs temos um Tim Blake Nelson, sempre divertido, a cantar baladas sobre a água no meio do Death Valley e a falar para a câmara como uma espécie de MC do tal livro juvenil de cowboyadas. Ele é o tal pistoleiro trovador com ar de pezinho mole que atira melhor que Lucky Luke (e a sombra dele). Há também um James Franco a reincidir em situações com a corda ao pescoço, há personagens amputadas, há o fantasma de Roy Rogers, de Liam Neeson, há Brendan Gleeson, há Tom Waits! Enfim. Tudo, tudo dividido em vários contos de poucos minutos, como as histórias que se contam à lareira.
Por aí vão os manos alinhavando as mais variadas referências do género, os diversos sub-estilos, evocando outros tantos clássicos. Na conferência de imprensa questionámos os manos realizadores sobre eventuais alterações depois de saberem que o filme seguiria para a Netflix. Não só pela tal introdução para a Câmara que funciona tão bem na intimidade com o espetador, mas ainda pela ideia da acção fraturada. Percebe-se a sensibilidade com que se aborda o tema Netflix, talvez por isso a resposta tenha sido frontal – esta foi sempre a nossa versão. E a única versão.
Na verdade, não deixa até de ter algum fascínio esta coleção de cromos. Quer tenhamos (ou vejamos) toda a coleção ou não. A questão é se chega realmente a ser um filme.
The Sisters Brothers
Por outro lado, ao vermos The Sisters Brothers não podemos deixar de sentir uma certa identidade de DNA com Buster Scruggs. Não só por relatar um novo conto do Oeste, mas sobretudo por percorrer esse mundo em transformação através do duo de pistoleiros, os manos Sisters, em que John C. Reilly interpreta o mais sensível e Joaquin Phoenix o mais duro e irascível. Sem necessidade de adiantar muito a história, o destino dos Sisters atravessa-se com o de um prospetor de ouro educado (Riz Ahmed) e do seu associado (Jake Gyllenhaal) acabando por formar uma insólita amizade.
Pena é que os aspetos laterais desta narrativa acabem por se sobrepor e tornar-se num elo mais interesse que a história, como a vontade de criar uma sociedade com valores democráticos. São elementos como estes, ou até a descoberta e o uso da escova de dentes de um mundo em transformação, que acompanham o grupo à medida que se vai deslocando pelo território. É por isto que o lado western acaba por sair algo mitigado, aliás como o próprio Audiard referiu, não é muito conhecedor de westerns e nem sequer tentou inventar o género. Ainda assim, acabou por referir A Sombra do Caçador, o único (mas bravo) filme de Charles Laughton, realizado em 1955.
Esta é uma viagem que entretém e que nos oferece algumas personagens coloridas, desde logo pelas particularidades de Reilly e de Phoenix, embora com mais dificuldade de alargar aquilo que já nos mostrou diversas vezes. Ou seja, sabe a pouco. A Sisters falta aquilo que sobeja em Scruggs (e vice versa) O melhor mesmo é apreciar a viagem que se faz história.