Afinal de contas talvez o céu possa esperar, como se escuta no filme. Elia Sulieman viaja da Narazé a Paris, e daqui para os Estados Unidos, mas apenas para ficar mais baralhado com o ritmo do mundo. It Must Be Heaven foi um dos últimos filmes em competição para a Palma de Ouro. Bem menos interessante é Sibyl de Justine Triet.
O realizador palestino criou um espaço autónomo para o seu cinema. E um cinema que faz apenas quando sente em absoluto essa necessidade. O último filme foi O Tempo Que Resta, há precisamente dez anos, apesar do interregno com a participação de um episódio no projeto conjunto 7 Dias em Havana. Para além disso, as suas narrativas dificilmente integram géneros pre-definidos. Uma singularidade ainda mais acentuada na edição deste ano com um festival fortemente dominado por propostas demasiado alinhadas em categorias de cinema definidas.
It Must Be Heaven é a quarta presença Suleiman em Cannes e, como se esperava, de novo com a ironia plácida da sua própria presença, qual observador atónito silencioso que regista mas não atua, embora esse silêncio seja bem expressivo no seu significado. No penúltimo filme da competição, a inperpretação de Suleiman reduz-se a duas brevíssimas frases que dizem basicamente o mesmo: “Sou da Nazaré” e “Sou Palestino”. Ou seja, sublinha a sua identidade, mas nos levar nasquilo que pode ser um a”palestinização” do mundo. Desde logo porque este é também o filme em que Elia sai pela primeira vez da Palestina (isto sem contar com 7 Dias em Havana, de certa forma um ensaio para este filme).
Tudo começa começa da forma mais desconcertante, na reconstituição de uma oração cristã em que supostamente se abrem as portas do céu. Só que lá de dentro dizem que não as irão abrir. Algo de burlesco acontece e sublinha o tom do filme. É claro que parte da especificidade de Elia Suleiman passa pelo papel que o próprio assume, normalmente associado a um certo cliché que o aproxima de Jacques Tati e Buster Keaton, embora seja algo que o próprio rejeita, manifestando até maior gosto pelo cinema de Tsai-Ming Liang, mas também Roy Anderson ou Hou Hsiao-Hsien, além dos mestres e iniciais inspiradores, Ozu e Bresson.
Em diferentes momentos, assistimos a essa alienação e à procura de outros espaços. Desde logo na sua chegada a Paris, onde primeiro se sente subjugado às coreografias da moda e aos rituais da segurança; ao passar pelas terras do Tio Sam, é o uso de armas que é caricaturizado ao extremo, em situações a roçar o grotesco, e em que a presença de um palestino num táxi é motivo de celebração do motorista árabe; mas também alguns contornos da própria energia da militância palestina. Contudo, um dos episódios mais caricatos neste périplo sucede na visita que Suleiman faz à sua produtora em Paris para a promoção do projeto It Must Be Heaven, embora para levar um a”tampa” do seu atual produtor, Vincent Maraval, da Wild Bunch, por entender que a ideia não deverá funcionar por se tratar da ideia obscura de “uma comédia sobre a paz no Médio Oriente”. Sobre esse tema, aparentemente insolúvel – será a tal entrada no céu? – apenas se dirá mais adiante que não será para esta ou a próxima geração.
Ainda assim, mais do que se embarcar em qualquer ativismo ou sugerir soluções para os problemas intermináveis, Elia Suleiman limita-se apenas a lançar interrogações com o seu sobrolho de espanto, incredulidade ou intriga. Talvez por perceber que esses problemas são, afinal de contas, comuns a outros países que não supunham tê-los. Ao inverter os dados do imbróglio da globalização, sugere talvez uma descompressão poética da tensão como forma de se poder enxergar melhor. Quem sabe, daí poder abrir as portas do céu.
Nada de mitos
O filme que fechou a lista da competição foi o bastante modesto Sybil, de Justine Triet. Numa pueril mescla da inteção de uma psicóloga em trocar a sua profissão pela de escritora. Sobretudo quando os dramas pessoais e amorosos de um cliente podem servir para animar a sua inspiração sob a forma de apropriação literária. Outras dimensões de complexidade variável acabam por impossibilitar uma análise mais profunda e pouco mitológica. Nesse sentido, a escolha do nome da profetisa Sibila, capaz de conhecer o futuro, tem um peso bem menor que Suleiman.
O problema fatal deste filme é perder-se nos seus próprios fios narrativos de um grupo de personagens neuróticas à deriva sem um verdadeiro sentido, a não ser na regular alternativa entre realidade e ficção, entre a tal partilha de traumas em sessões terapêuticas convertidas em ficção literária ou até da vida real que se intromete na rodagem de um filme. Enfim, uma trapalhada em que se meteu a francesa Justine Triet, pela primeira vez em Cannes, e que envolveu atores com alguma reputação como Adèle Exarchopoulos (A Vida de Adèle), Gaspard Ulliel (Saint Laurent), Sandra Huller (Toni Erdmann) e Virginie Efira (Ela), a protagonista.