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Samuel Maoz, o realizador de ‘Foxtrot’, falou ao Insider em Macau

Samuel Maoz

“O exército israelita é uma espécie de ‘vaca sagrada’”

 

PAULO PORTUGAL, MACAU

 

Vamos dançar Foxtrot? Um passo para diante, um para a direita, outro para trás e, finalmente, outro para a esquerda, regressando à posição inicial. É isto o Foxtrot, a ideia desse eterno ‘loop’, como o cineasta israelita nos explicou durante um encontro que tivemos em Macau, em dezembro de 2017, durante o 2º Festival de Cinema de Macau, onde venceu o prémio de Melhor Argumento, isto já depois de um encontro inicial no festival de Veneza onde apresentara o filme em estreia mundial. Samuel Maoz não é um cineasta qualquer. Apresenta-nos a sua visão aguda e corajosa sobre a realidade israelita e, sobretudo, a forma como assumiu a sua posição de força após o trauma do Holocausto.  Foxtrot é assim um parceiro essencial de Líbano, o seu filme de estreia, vencedor do Leão de Ouro em Veneza, em 2009, de resto, onde descobrimos o seu cinema arrebatador. E logo no ponto de vista do interior de um carro de combate que empurra o espetador para a frente de batalha numa experiência que nos leva a questionar o imbróglio do Médio Oriente de uma forma ainda mais fria. Agora é o “pós-trauma”, como nos confessa Maoz, num filme resistente e corajoso que ousa olhar de frente as ‘vacas sagadas’ do seu país.

Caro Samuel, é um prazer vê-lo de novo, depois de Veneza. Depois de Líbano, um filme baseado na sua experiência como soldado, apresenta Foxtrot a recuperar em tom de dança o trauma pós-conflito. De que forma encara esta relação entre ambos dentro da sua experiência pessoal?

Tem razão no que diz. No entanto, Líbano já era um filme sobre o trauma. Ao passo que Foxtrot é um filme pós-trauma. E porque o pós-trauma é muito mais complexo que o próprio trauma. Eu tive uma experiência terrível na guerra, mas não tinha a certeza que sofria desse pós-trauma. Contudo, depois desse filme percebi que havia esse lado. Em Foxtrot quis ascender a um outro nível, quis falar do lado pessoal que afeta a nossa sociedade.

E como o descreveria esse lado pessoal?

De certa forma, a ideia comum do pós-trauma é um cliché. Achamos todos que temos pesadelos, que não comunicamos. Como a personagem do Michael (Lior Ashkenazi), ele faz tudo para provar que está bem. Cria um bom negócio, constitui família, compra um apartamento de luxo. Tudo para esconder este segredo, esta fraqueza. Na sociedade israelita existem várias versões de Michael, no fundo a minha geração.

A sua geração que descende daquela que viveu o trauma. Sente essa distância?

Pois, somos a segunda geração do Holocausto, aquela que não viveu o horror, por isso não podia queixar-se de nada. Os nosso pais e os professores que sobreviveram ao pior trauma dos tempos modernos, todos eles se tornaram em pessoas muito instáveis. Era frequente usarem o argumento de que tinham sobrevivido ao Holocausto e que nós tínhamos uma vida ótima ao sol. Por exemplo, quando era pequeno a minha mãe queixava-se das minhas diabruras dizendo “foi para isto que sobrevivi ao Holocausto”?

Criaram assim um ‘gap’ na sua geração…

Quando nós regressámos da guerra com dois braços e duas pernas, não podíamos queixarmos de nada. Não tínhamos sobrevivido ao Holocausto. Não nos podíamos queixar. Tínhamos de reprimir essa ideia. E assim ficamos no nosso ciclo vicioso, no nosso foxtrot.

O Foxtrot, a tal dança em que acabamos sempre no mesmo lugar…

Exatamente. Então se calhar, qualquer um pode retirar o seu significado. Ainda assim a minha conclusão é que o destino pode ser mudado, não pela divindade, mas porque os homens e mulheres que moldam a sociedade estão eles próprios presos a esse trauma. Ainda que qualquer passo que saia desse foxtrot terá de ser feito pela liderança.

É essa liderança que o acusa de ser uma traição ao pais e má propaganda? Como lida com isso?

Bom, se tivesse feito um filme sobre um crime cometido numa qualquer esquadra de polícia, no dia seguinte ninguém teria dito que era um filme sobre a má fama da policia. Por outro lado, se alguém toca no exército isso já é bem diferente. Eles são intocáveis. Cada geração tenta resgatar-se do loop do Foxtrot, desse círculo vicioso. Como o Michael que tenta substituir uma Bíblia que o avô deu à mãe antes de ir para a câmara de gás pela própria vida. Ele fez o que podia fazer. O problema é que não é apenas esta liderança mas todas tocaram nesses limites do trauma, com slogans que não têm a ver com esse diálogo mas com a memória. Somos um país em perigo existencial. Este é a ‘mãe de todos os slogans’. Ainda no outro dia ouvi políticos dizer que somos uma potência tecnológica, um potencial nuclear, porque estamos num perigo existencial. Parece-me que isso é como dizer sou jovem, sou forte e saudável, por isso estou doente… (risos)

Como avalia então as críticas que vieram dos setores do poder no seu país?

Surpreende-me como a Ministra da Cultura ataque o filme sem o ter visto. E fá-lo confirmando o que lá se diz , ou seja, aproveitando-se dos slogans de que falo no filme. Ela diz que o filme Foxtrot está a destruir o pais. Ou seja, como se fosse uma espécie de arma nuclear. Claro que posso dizer algo da fação radical israelita. No início senti que o filme não precisava dessa publicidade, mas tenho de concordar que ela estimula o debate publico. Se formos coerentes não seremos nós a pensar que o filme mudará o curso da História, mas pelo menos poderá criar a discussão. Nesse sentido, não sei como lhe agradecer essa oportunidade.

Samuel Maoz

Fiquei curioso também com as outras reações, ou seja daquelas que percebem o filme e acham que poderá trazer uma outra discussão, isto e não acabar no mesmo lugar?

O que posso dizer é que espero que isso também aconteça. Mesmo se possa se considerado algo naif. A verdade é que desde que o filme estreou em Veneza (em 2017) que se fala nisso. É uma discussão longa, falam do filme que colocou a sociedade israelita num ponto quente. Fico curioso em perceber como aqueles que perceberam a mensagem e aqueles que não querem perceber. A sequência a meio do filme assume-se como uma alegoria surreal, pois queria refletir a sociedade sobre esse ponto de vista. É o espelho daquilo que somos, com o exército a simbolizar a nossa libertação. O exército israelita é uma espécie de ‘vaca sagrada’.

Disse que o Holocausto é como uma sombra das gerações futuras. Até que ponto o Holocausto pode explicar também o que se passa entre Israel e a Palestina?

Sim, claro que explica. As pessoas são como escravas da ideia de que estamos ainda a viver um perigo existencial. Hoje Israel é numero um em crianças pobres. Temos 8 milhões de pessoas, mas 1 milhão, ou seja, 18% vivem abaixo do limiar de pobreza, ou seja morrem de fome. E é neste clima que o Primeiro Ministro compra seis submarinos à Alemanha. Isto para quê?! Os nossos vizinhos estão acabados. Até o mundo árabe não lida mais com a Palestina. Mas temos um país com armas atómicas! O que precisamos é de educar as nossas crianças!

Ou seja, vive-se no tal Foxtrot com o medo do passado…

Exato. Dantes fomos uma nação em ‘perigo existencial’, o exército era limitado. Se virmos as guerras israelitas percebemos como na primeira guerra o exército era muito pequeno e teve uma grande vitória, mas com o crescimento de tornou-se mais forte e mais tecnológico e a motivação tornou-se menos pura.

Até que ponto a decisão do Presidente Trump em relação a Jerusalém acaba por agravar o problema de uma solução pacífica para a região?

Isso é importante, mas são apenas palavras. Ele diz algo porque o Bibi (Benjamin Natanyahu) lhe disse para dizer. São apenas palavras.

Sim, mas é dinamite!

Claro que é, mas isso vai aumentar também a sua influencia interna. Temos muitas questões de corrupção, investigações policiais a decorrer. Mas nada como termos também uma guerra para canalizar a atenção para outro lado. Não temos de ser políticos para perceber como o Trump não é muito estável. Ele comporta-se como um menino na escola primária. Se falar disto não terá de falar dos pobres de Israel…

Mas o seu filme também tem uma centelha de esperança…

É verdade. Na cena em que ele fala com a rapariga no carro. Claro que fiz isso para ter esse efeito de esperança. No entanto o destino não pode ser aletrado. Não pode ser divino, mas pela natureza do trauma.

Acha que esta dança de foxtrot irá continuar neste loop?

Todas elas tentam escapar a este loop. Como no Padrinho, Al Pacino diz assim: “eu quero sair, mas voltam sempre a levar-me lá para dentro (da ‘cosa nostra’)”. Acho que precisamos mais do que três gerações para alterar este estados de coisas.

Todas as sociedades precisam de uma identidade, nesse sentido o trauma parece ser a identidade d Israel.

É bem verdade, porque podemos falar de um tipo de alemão ou um tipo de israelita. Eles vieram de todos os lados. Cada um com a sua cultura, todos os hábitos. Nós somos judeus mas isso não significa mada. A identidade do nosso país não pode apenas vir das nossas origens.

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