Depois de vencer o Leopardo de Ouro em Locarno, em agosto passado, e outros prémios que foi conquistando em diversos festivais internacionais, podemos finalmente expor-nos diante da magnitude de Vitalina Varela. Estreia no dia 31, bem a propósito, na véspera do dia dos mortos.
Abrimos os olhos num ecrã negro e habituamos o olhar à pureza da ausência de luz. Assim detetamos a procissão lenta de criaturas – podiam muito bem ser zombies – que se arrastam à saída do cemitério, acentuadas pelo tom chiaroscuro renascentista da fotografia etérea e irreal de Leonardo Simões. Na verdade Vitalina Varela (VV) não deixa de ser um filme de zombies, tal como o próprio Ventura de certa forma já o era em Cavalo Dinheiro, naquilo que muitos viram como uma aproximação às produções estilizadas que Val Lewton produziu para Jacques Tourneur.
“Chegaste atrasada”, hão-de sentenciar a Vitalina as vozes de rostos baixos depois desta figura imponente, quase irreal, descer as escadas do avião, descalça, numa arrepiante imagem noturna, ainda antes de surgir no ecrã o título do filme que é também o seu nome. Vitalina Varela é então a personagem, é o próprio filme, mas é também a mulher real, plena na sua condição e naquilo que o tempo e a história lhe concederam. Por aí se vai esboçando o sentimento de mundo paralelo que sentimos ao longo deste filme quase ausente de diálogos, sublinhado apenas por um permanente ruído de fundo de vozes, ruídos e sussurros.
Percebe-se que VV terá a sua génese em Cavalo Dinheiro – também distinguido em Locarno com o prémio de realização -, onde Vitalina já se queixara de chegar atrasada ao funeral do marido, embora essa ligação seja até herdeira dos filmes anteriores. Em certa medida pressentimos as trevas de VV no afunilar de imagens e luz patentes na exposição e instalação Pedro Costa Companhia, exibida em Serralves há quase um ano. A depuração atinge tal ordem que revela fotografias antigas sobre a condição humana, como as de Jacob Riis ou Walker Evans, nessa mesma exposição, mas também na forte evocação pictórica dos autênticos quadros-vivos de Vitalina Varela, ensaiando um estilo exacerbado, luminoso e alongado próximo de um El Greco negro.
É ao contemplar esta sucessão de admiráveis planos fixos que sentimos a desaceleração da câmara e a imobilização dos fotogramas, como se o cinema regressasse à fotografia e antes disso à pintura num exercício de imortalização das figuras como que apanhadas em permanente luta contra a morte. Celebra-se assim essa vontade de ser cinema, tal como na justa expressão do texto seminal de André Bazin, A Ontologia da Imagem Fotográfica, escrito em 1945, contido na obra fundamental Q’est-ce que le Cinéma?
É mesmo do outro mundo, este cinema que começou por nos encandear com a luz do sol em Casa de Lava (1994), iluminando também Pedro Costa a seguir um outro rumo – quem sabe, talvez à procura dos rostos das mulheres cabo-verdianas que admitimos terá visto em Sans Soleil, de Chris Marker (1983) -, descobrindo o rosto dos outros em Cabo Verde, transferindo para esses rostos negros o contraste a preto e branco que transportava da fotografia de O Sangue (1989) tornando ainda mais denso, vivo e humano o seu cinema. Um percurso prolongado em Ossos (1997) e, naturalmente, exacerbado em No Quarto da Vanda (2000), antes de Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro (2014), igualmente visitado no formato das suas curtas. Sim, o cortejo de Vitalina Varela vem de longe a celebrar o seu requiem negro.