Nesta vida de duplas narrativas percebe-se bem o que fica pelo meio, o que separa, embora algo que Karim entretece com um cinema que não aceita render-se à telenovela. Tão ajustado António Fonseca na representação desse pater famílias emigrado, alinhavado pela submissa Flávia Gusmão na representação feminina funcional. Porque é de uma vida inteira que se trata, contaremos com o feitiço do tempo para identificar aquilo que muda, o que permanece imutável e aquilo que apodrece e morre.
A Vida Invisível poderia ter dado uma novela competente, mas percebe-se que é no cinema que melhor se afirma a sua densidade traduzida por um inteligente jogo de espelhos em que melhor se compreende o valor da intimidade, solidariedade, do ser feminino. O decisivo ‘feitiço’ será dado pela presença breve, mas tremenda, de Fernanda Montenegro, a sublimar toda essa carga e tensão, a dar expressão maior ao tal ‘melodrama tropical’, que poderá ser lido de diversas formas, até com alguma ironia a devida atualidade.
É assim o cinema de Karim Ainouz, ele que se afirmou como uma das vozes mais fortes do potente e diversificado cinema brasileiro e cujo percurso vem marcado por um certo humanismo em saudável equilíbrio entre a ficção, as curtas metragens e o documental. Entre a nossa descoberta de Madame Satã, no festival de Cannes, em 2002, na secção Un Certain Regard, até ao prémio o ano passado, na mesma secção, com A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (assim era a versão inicial do título, o mesmo do romance), o filme indicado pelo Brasil para o Óscar internacional, há todo um cinema marcado pelos segredos que o tempo não apagou.
Momentos que fomos acompanhando em diversos momentos. Como em Veneza, em 2009, a propósito do magnífico road movie com o belo título Viajo Porque Preciso, Regresso Porque Te Amo, realizado em parceria com Marcelo Gomes, e depois em Berlim com A Praia do Futuro, numa forma diversa de aflorar o filme em movimento e logo numa história de amor com mais marcas de proximidade com A Vida Invisível. O reencontro em Berlim ocorreria em 2018 com o documental Zentralflughafen TFH, no título original (pois foi rodado em alemão e em Berlim onde reside o cineasta), a propósito do aeroporto inaugurado por Hitler (entretanto encerrado em 2008) e que passou a ser usado como um local de alojamento de refugiados e parque de diversões para os locais. Ou não fosse este também um cinema de encontros contradições.