Em jeito de nota de rodapé, valerá a pena recordar que este ano ocorreu algo insólito nas nomeações da categoria documental (tradicionalmente sem o mesmo foco mediático de outras), ou seja, a seleção de dois documentários focados na guerra da Síria, em particular sob o ponto de vista do papel desempenhado por hospitais improvisados, responsáveis pelo salvamento de milhares de vítimas do conflito. Além daquele aqui comentado, tivemos The Cave, (um filme igualmente fortíssimo!), realizado pelo sírio Feras Fayyad, ele próprio realizador de Last Men in Aleppo, curiosamente o principal candidato a vencer o ano passado a mesma categoria (mas que seria entregue a Free Solo, sobre a aventura da escalada a solo do monte El Capitan, na Califórnia).
Independentemente dos valores sociais de American Factory, da dupla Steven Bognar e Julia Reichert, e da forma como documentam a perda de direitos sociais de uma empresa americana depois de ser comprada por chineses, percebe-se que talvez estes dois filmes igualmente fortes mas com o mesmo tema poderão ter vampirizado a opção e distribuído as escolhas. O título sugere-nos até uma curiosa (e inesperada, mas não despropositada) comparação a A Fábrica de Nada, sobre um grupo de trabalhadores que decide tomar a si o controlo de uma fábrica prestes a ser desativada. Embora dessa comparação, o filme de Pedro Pinho sairá sempre vencedor.
Naturalmente, isso vale o que vale, embora o mais relevante seja uma chamada de atenção para estes dois documentários urgentes sobre a realidade de um mundo que apenas conhecemos pela triste sorte dos emigrantes que conseguem escapar.
Mas vamos a Para Sama e ao seu lado de home movie, ao fim e ao cabo, o derradeiro testemunho de uma realidade demasiado atroz para não ser documentada pela mais democrática das câmaras, o smartphone. Neste caso, com mais meios, a câmara que a jornalista Waad el Kateab não larga e tudo regista, pelo menos desde que celebra a saída da universidade em coincidência com a revolta estudantil que haveria de se converter em massacre de estudantes.
Ela filma as crianças feridas, deitadas no chão naquela catacumba e os corpos já sem vida, a registo em fundo o ruído dos caças russos; e filmará depois a própria bebé Sama, já indiferente aos rebentamentos dos rockets e caos daquele serviço de urgência permanentemente repleto de imagens de perturbante horror. Se bem que, pelo meio haverá até espaço para captar um milagre, do qual não falaremos, embora valha a pena referir um outro milagre, aquele que surge como um dióspiro ainda verde que um homem oferece à sua mulher e a faz encher de vida o seu rosto, como se tivesse visto uma jóia rara.
É talvez esta proximidade com a guerra que nos faz perceber como é tão diferente o ponto de vista de quem testemunha agora a estas imagens no cinema. E perceberá também melhor o passado daqueles que preferem arriscar a vida (no fundo algo que sempre esteve em risco) a tentar chegar à Europa em barcos de borracha.
Para Sama é um clássico instantâneo do cinema de direitos humanos, que tivemos o prazer de rever ontem, dia 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher.