Muito provavelmente é do mexicano Carlos Reygadas que nos chega o cinema mais desafiante do nosso tempo. Mesmo sem grandes sucessos ou prémios internacionais, pelo menos da dimensão dos compatriotas Alfonso Cuarón, Gonzalo Iñárritu ou Guillermo del Toro. O seu cinema é raro e oferece-nos momentos cinematográficos puros, leituras sensoriais que desdenham fórmulas (e receitas de sucesso). É cinema das entranhas – e que se entranha -, feito de uma energia telúrica, quase cósmica. E sim, talvez por isso, um tratamento do tempo inigualável no cinema. Nada que tenha a ver com as quase três horas de duração, que apenas nos submetem a uma vivência do filme e que nos faz perder a noção do tempo. Um tempo que remete antes para a sua própria durée, e para a medida com a realidade. É isso o Nosso Tempo.
Uma vez mais, um filme dos homens e dos animais. De todas as idades. Magnífica sequência inicial reveladora de um mundo de crianças, adolescentes e jovens captada com a lente sensorial do diretor de fotografia mexicano Diego Garcia, colaborador habitual de Gabriel Mascaro (no recente Divino Amor e também em Boi Neon) além de uma parceria com Apichatpong Weerasethakul (em Cemitério do Esplendor), que começa por sugerir a interação e a intimidade.
Reygadas transporta-nos para o seu rancho no México expondo-se (a si e à sua família) num registo que ousa bulir com tabus – como o assumir uma relação sexual livre com a mulher. Segundo nos revelou o cineasta em Veneza, há quase dois anos, quando Nosso Tempo passou em competição no festival (num certame que consagrou ROMA, de Cuarón), a ideia terá nascido de um ex-ator porno americano que Reygadas conheceu e permitiu explorar a ideia titilante de assumir o sexo da mulher com outro, algo que cresce cada vez mais na cultura americana. Por isso jogou com a dimensão da possessão, o ciúme, admitindo que lhe seduz mais “a ideia do voyeurismo. É claro que muita gente pensa em manipulação, cada um fará a sua leitura.”
Juan (Reygadas) vive com a mulher Esther (Natalia López, sua mulher) e os filhos (do casal) no seu rancho, onde trabalham outros vaqueiros que tratam da propriedade bem como dos cavalos e dos touros. É com um desses homens que Esther iniciará essa partilha amorosa, aliás num prolongamento que vem do anterior Post Tenebras Lux, exibido em Cannes, em 2012 (onde venceria o prémio de realização) em que o casal nesse filme (Juan, tal como agora, e Natalia, o nome da mulher) explora uma relação semelhante. De resto, esse tema dos diversos níveis do envolvimento biográfico acabou por dominar a conversa muito descontraída em Veneza, em que o cineasta se apresentou de havaianas. Uma outra proximidade com Post Tenebras Lux, cuja tradução será “luz depois das trevas”, é a presença taurina que permite sequências fortíssimas capazes de estabelecer uma comparação entre instinto animal e o impulso humano.
Prosseguindo no mesmo tom, Reygadas questiona inclusive a ideia de se tratar de um filme de relações abertas optando por o encarar “mais como uma reação a essa relação tradicional de casamento”, argumentando se “tudo é baseado numa posse sexual, será que o amor é apenas baseado no sexo?” Ou seja, para Reygadas “um casal que consegue superar uma relação de sexo fora do casal, não quer dizer que seja uma relação aberta.”
Neste caso, percebe-se que a realidade que pretende mostrar é mais do que a realidade física. “A nossa vontade não tem de participar quando estamos a criar. Tal como não temos controlo nos nossos sonhos. De uma forma mais ligeira, diria que a intuição permite-nos criar sem outras ajudas. Apenas precisamos de uma pinga de gasolina para acender a cena. Aliás, escrevo muito pouco, construo o filme mais de uma forma intuitiva e quase hipnótica.”
Por falar em hipnose, um dos momentos de cinema mais hipnóticos que vivemos nos últimos tempos ocorre ao som do clássico psicadélico (hipnótico mesmo!) Carpet Crawlers, gravado em 1974 pelos Genesis, quando Natalia reflete o turbilhão da sua relação no regresso ao rancho após o seu encontro amoroso. No seu momento mais alto, o plano passa para o interior do carro, para a mecânica do automóvel, os amortecedores, as rodas, como que esse corpo mecânico comungasse subitamente da mesma energia. E pudesse ao mesmo tempo exprimir o sentimento do amor e possessão, mesmo que se formas bem distintas. Ou então na cena potente e vital, via Skype, em que o marido pede à mulher que lhe mostre os seios, mas que os enquadre bem no monitor, antecipando uma perturbante descarga emocional. Porque, como diz o refrão da música, We’ve got to get in to get out…
A neblina matinal do fim parece ser também o início (e a confirmação) daquilo que não mudará. Tal como a luta das vacas e dos bois, algumas delas mesmo viscerais. Como aquela em que uma mula é despedaçada por um touro. Afinal não foi, como explica. “Mas não teria problemas em fazê-lo. Seria menos hipócrita do que matar para a comer. O que queria era fazer o filme dez uma forma tradicional, um pouco como nos anos 60, sem efeitos. Eu não deveria dizer isto, mas essa mula já está morta, é um cadáver preso à carrinha. O touro sai bravo e despedaça-a. Eu gosto de animais e tento não os magoar, mas se tivesse de o fazer também faria. Só que ninguém fala na violência que é exibida no cinema, com pessoas a morrer, cabeças que explodem, etc.
O cinema de Carlos Reygadas é um cinema de raça, no sentido de um certo pedigree animal, em que as personagens reagem e refletem o que lhes parece estar inscrito no instinto, como algo ancestral, a que a proximidade de Malick ou Kubrick não chocaria. Até porque dominado por uma estética que parece superar o real e o tempo, no sentido deleuzeano e bergsoniano do termo, como algo que se reconstitui num eterno retorno perfilhado pelo cinema. Ou como diz o Reygadas “O tempo é a coisa mais bonita no cinema é onde o ritmo pode ser construído”.