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Diapasão: o sabor amargo de uma causa justa

Neste tempo de pandemia, em que cada saída para o exterior deve ser ponderada, temos dois filmes iranianos a segredarem-nos que as melhores descobertas se fazem em farsi. Se O Mal Não Existe, de Mohammad Rasoulof, estreado a semana passada, dispensa maiores apresentações, pois trata-se de um cineasta já conhecido dos grandes festivais, vencedor do mais recente Urso de Ouro em Berlim, já Diapasão, do estreante Hamed Tehrani, merece toda a nossa atenção na difícil tarefa de se dar a conhecer dentro das possibilidades limitadas do frágil circuito de distribuição de cinema independente. E merece-o por dois motivos: desde logo por se tratar do filme de lançamento da Filmógrafo, como distribuidora, pelo menos desde a direção de António Costa Valente, mas também por ter sido o vencedor da 24ª edição dos Encontros Internacionais de Cinema, Televisão, Vídeo e Multimédia – AVANCA 2020. Isto apesar de Diapasão ser de 2019, portanto anterior ao filme de Rasoulof.

Procurando precisar o rigor da palavra que dá o nome ao filme de estreia do realizador iraniano, recordamos que diapasão é o instrumento com que se mede o som na afinação de instrumentos ou que detecta alterações da acuidade auditiva. Afinal de contas, elementos de alguma precisão que serão convocados para encontrarmos o melhor conforto num filme que lida de uma forma inesperada com questões de alma sensíveis a uma tradicional sociedade patriarcal, sobretudo quando se intrometem outras a motivar uma precisão muito mais fina. Mesmo com uma afinidade próxima a Asghar Farhadi, sobretudo por nos recordar dúvidas próximas às que nos sobressaltaram no aclamado A Separação, um dos grandes filmes de 2011 (e mesmo da década), Diapasão desafia-nos a atualizar um maior conhecimento da atual sociedade iraniana, bem mais cosmopolita e aberta, apesar de alguns preconceitos mais difíceis de mudar, mesmo sem ser naquela visão tradicionalista e monocromática.

Mesmo correndo o risco de provocar alguns spoilers, não nos parece que a informação afecte o melhor desfrute da película. A confiança na vida confortável que Rana Salehi (Zhaleh Sameti), uma mulher emancipada, mãe solteira e com um cargo de responsabilidade numa instituição bancária, construiu para si, sofre um rombo irreparável quando a tragédia afecta a sua filha Hoda, uma estudante brilhante e candidata a uma especialização em medicina, precisamente no dia em que celebrava com as amigas o seu 17º aniversário.

Diante de algo irreparável, a mãe irá deparar-se com a necessidade de reparação, no caso com uma pena capital. Apesar de Tehrani inserir este potente drama humano numa sociedade onde é evidente a desigualdade de direitos entre homens e mulheres, torna-se hábil em ‘acinzentar’ a situação, retirando-nos uma eventual zona de conforto, ou de um certo estereotipo, que nos leva mais a formular questões do que a encontrar respostas. Isto porque nos sentimos moralmente a acompanhar a dor desta mulher moderna, que possibilitou a melhor educação para a sua filha, mesmo quando o reverso levanta questões de outro tipo, quem sabe até próximas da superioridade masculina que repudia. A zona cinzenta adensa-se ainda mais ao sabermos que para cumprir a sentença em causa, o condenado, sendo homem, deverá receber uma indemnização (ou a família dele).

Diapasão

Por aqui que entendemos que Tehrani sugere o diapasão para lidar com algo que é tão perigoso como colocar a dúvida, tanto moral como jurídica, numa mulher esclarecida que se confronta com uma decisão que irá abalar toda a sua estrutura moral. No limite, aceitar a retribuição da lei de Talião para um acto marcado pelo infortúnio. É perante a magnitude desta dúvida que tentamos procurar a melhor afinação ou acuidade ao desenlace mais adequado.

Mesmo com um acerto muito razoável das emoções, percebe-se que falta ainda a Tahrani uma outra consistência cinematográfica, ou uma outra durée em certas cenas, como a cena fundamental cuja mise en scène não estará, eventualmente, à altura da magnitude que irá assumir. O que em nada retira a Diapasão de um filme que vale mais que muitos blockbusters e até o que muitos filmes iranianos não alcançam, que é a coragem de conseguir olhar para ambos os lados na atual sociedade, como que a sugerir um maior conhecimento para não apressar juízos de valor apressados. Foi precisamente esse incómodo que mais apreciámos. Se isso não é cinema, o que será?

 

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