Pois foi isso que sucedeu neste filme que Bertrand dedica à filha que acaba de atingir a maioridade. Recorde-se, a título de curiosidade, que Anna Mouchette Bonello nasceu em 2003, em Cannes, durante o festival. Ele que já lhe dedicara o anterior Noturama (2016).
“O presente parou. Não há passado nem futuro”, lê-se numa legenda inicial, como que a fixar esse momento especial tempo e talvez reflectir naquilo que ganhamos e perdemos. Ou seja, temos aqui o cinema enquanto espaço de reflexão, mas a levantar e sugerir outras pistas. É então nesse espaço de confinamento que se aborda a questão das influencers, em particular uma Patricia Coma que consegue criar uma ligação especial, quase hipnótica com os seus seguidores adolescentes, através de um pequeno gadget intitulado o ‘revelador’. Argumenta ela para quem a segue que “o livre arbítrio não existe”.
Talvez por isso, faça muito sentido a inclusão do excerto vídeo de uma das conferências do filósofo francês Gilles Deleuze, em que diz com o seu estilo inconfundível méfiez-vous des rêves des autres…, “pois podem ser vítimas dos sonhos dos outros”. E o sonho será tanto aquele formatado pelos vídeos de Coma, como também pelo universo paralelo que a jovem adolescente (Louise Labeque) cria no seu quarto, com uma casa de bonecas em que uma espécie de Barbie e Ken ganham vida, em animação stop motion, para nos dar uma variante de uma novela. Aqui com a curiosidade deste ‘Ken’ possuir a voz de Gaspard Ulliel, naquela que foi uma das últimas experiências do famoso actor francês antes do acidente seu acidente. Entretanto, a jovem deleita-se também com um grupo de amigos, via zoom, a discutir qual o serial killer favorito de cada um. A certa altura, temos mesmo uma frase enigmática que anuncia que “se atravessas o Inferno não deves tocar a poesia”.
É esse corte entre a realidade, o humor negro, combinado com um certo lado experimental do cinema e devidamente embalado pela música original da autoria do próprio Bonello, aliás, como vem sendo hábito nos seus filmes. Coma é um filme fascinante e pleno de significados, algures na linha do video essay. Seguramente, um dos mais atraentes deste festival.