A homenagem a Patricio Guzmán foi um dos pontos mais altos da 34ª edição do Cinélatino, em Toulouse. Mesmo com uma presença apenas virtual, ficou sublinhada a forma íntima como lida com o cinema e a afectividade política do seu país.
O documentarista chileno Patricio Guzmán consegue a proeza de conciliar momentos de tremenda agitação politico-social, captados em autênticas ressonâncias da memória, ao mesmo tempo que os apazigua em elementos primordiais e os devolve depois numa serena paixão pelo seu próprio povo. É isto que se constata numa mirada aos espelhos dessa particular militância que já ultrapassa meio século, alinhavada que está por 13 longas metragens documentais de forte reconhecimento internacional. No Cinélatino fez-se a justíssima homenagem – apesar de Guzmán ser já um homem da casa – propiciando-nos a essa viagem febril pelo cinema de um DNA fortemente politizado. Foi então esta a adequada revisão da memória colectiva enquanto esperamos a concretização do seu próximo projecto, ao que se sabe, inspirado pelas revoltas politico-sociais dos dois últimos anos (entre 2019-2020), embora desta vez particularmente focadas na vontade e anseios do elemento feminino.
Mesmo sem poder deslocar-se a Toulouse, devido a problemas de saúde, ainda assim foi possível contar com Patricio Guzmán, em diversas sessões zoom, a acompanhar os debates em redor de vários dos seus filmes, na retrospectiva intitulada Patricio Guzmán – De la memoire aux Etoiles (na memória às estrelas), em olhares cruzados entre o cineasta, historiador e astrofísico. Oportunidade para ver (e rever sempre) mais de uma dúzia dos seus documentários mais marcantes um cineasta que desejou estar de câmara em punho no lugar onde a História estava a acontecer.
“Hoje em dia existe um movimento social gigantesco no Chile, de união de pessoas na rua. É incrível porque começa a mudar o país. Um movimento novo, revolucionário, democrático. O país começa a trabalhar com o seu próprio passado. É necessário reconstruir o nosso país”, referiu via zoom. “o próximo filme, poderá ser também arqueológico, cósmico e mágico, uma tendência em que me sinto muito bem”.
Guzmán que tinha decidido estudar cinema em Espanha, já que no Chile não possuía meios capazes, acabará por regressar a Santiago, em 1971, cheio de ideias de cinema, e alguns guiões na forja. É aí que filma El primer año (1972), o seu primeiro filme documental, procurando acompanhar as mudanças do primeiro ano da presidência de Allende, período das nacionalizações. É nessa altura que conhece por acaso o francês Chris Marker (1921-2012), que acaba por se interessar por El primer año e acaba mesmo por comprar os direitos e exibir o filme em França e em vários outros países. Só em 1973, quando a situação se torna complicada, Guzmán decide contactá-o e pedir-lhe ajuda. Dos semanas depois, recorda, chega uma resposta “farei o que puder, assinado Chris. E depois um caixote enorme com película e negativo para 45 horas de filmagem.
O resultado será A Batalha do Chile, dividida em três partes, montadas e lançadas no mercado em alturas diversas: A Insurreição da Burguesia (1975), O Golpe de Estado (1977) e O Poder Popular (1979). Assim foi ordenado, de acordo com diversas leituras possíveis, o acompanhamento do levantamento popular, em defesa das políticas progressistas do presidente chileno recém eleito, Salvador Allende; mas ao mesmo tempo, a contra-corrente da classe média e das manobras políticas no sentido de as contrariar, numa última fase com o apoio da CIA e do governo de Richard Nixon, culminando no ataque militar ao palácio La Moneda, em 11 de Setembro de 1973, e na morte de Allende. Talvez o reverso, mas eventualmente também uma inspiração, do que sucedeu pouco mais de seis meses depois, em Portugal, na madrugada de 25 de Abril, com o assalto ao quartel do Carmo, comandado pelo capitão Salgueiro Maia, para depor a figura mais alta do regime, Marcelo Caetano.
Depois desta excelente oportunidade para rever e acabar de descobrir o cinema de Patricio Guzmán, apetece dizer que há algo na sua extrema delicadeza de trato que perpassa para as imagens. Mesmo quando se trata do registo mais forte de cinema-ação, de La batalha de Chile, entre as palavras de ordem nas ruas, as manifestações, os comícios, as perguntas muito directas que faz às pessoas na rua, no melhor estilo de cinema verité, com a percepção nítida de captar o momento, de saber que se está a assistir à própria História, do que cuidados com o rigor dos enquadramentos. Com relevância até no momento em que a câmara do repórter Leonbardo Henriksen capta a sua própria morte, na cena que abre a 2ª parte de A Batalha do Chile – O Golpe de Estado.
Ainda hoje, mesmo com um material alvo de várias montagens diversas, sente-se peso (e a responsabilidade) do cinema de propaganda e acontecimentos políticos absolutamente marcantes. E que seguramente ganham uma rima inesperada e que merece ser visto em face do filme colectivo As Armas e o Povo (1975).
Antes ainda de Nostalgia da Luz (2010), Guzmán faz ainda dois filme ‘difíceis’, como o próprio qualifica. Um sobre o vilão desse processo que amputou a euforia revolucionária, El caso Pinochet (2001), acompanhando a história do processo contra o ditador, e o outro, sobre seu herói, Salvador Allende (2004). Por fim, a vontade de abrir um outro caminho, na terceira trilogia junta a memória ao deserto de Atacama, à Patagónia e ainda à cordilheira dos Andes. No fundo, uma delimitação geográfica com as coordenadas do norte, com o deserto, em Nostalgia da Luz, 2010, a sul, na Patagónia, com O Botão de Nácar, 2015; por fim, a ‘parede’ da cordilheira a leste, com La Cordilheira de los Sueños, 2019. Cada uma com os três elementos vitais: a luz, a água e a pedra.
“No norte do Chile existe uma enorme quantidade de observatórios astronómicos”, referiu. “Foi algo que me apaixonou e um dos meus sonhos era filmar lá. Encontrei então um argumento cinematográfico encontrei para reunir os milhares de desaparecidos no Chile – são quase 400 pessoas – por Pinochet; além disso queria reunir os vários elementos que nos convocam com o passado, como os traços de corpos mumificados que podemos encontra no deserto, isto perto dos observatórios que trabalham na minha do passado. Foi esta a linha do guião que me levou-a escrever Nostalgia da Luz.”
Recuperado desse novo regressar ao passado, o que cobrou uma nova década da vida de Patrício, procurando estabelecer um paralelismo entre elementos naturais, arqueológicos ou astronómicos com elementos da humanidade de milhares de desaparecidos, servindo como metáfora para os desaparecidos (possivelmente enterrados) no deserto de Atacama (Nostalgia da Luz), ou como esse passado pode ser resgatado vítimas era atiradas de helicóptero ao mar, com parte de um carreira ferroviário no peito ou o genocídio dos povos indígenas da Patagónia (O botão de Nácar); por fim, o eterno confronto com um passado arqueológico plasmado nas diferentes testemunhas e, seguramente, nas imagens captadas pelo repórter amador, que acompanhou a ditadura de Pinochet, e que pode ser encarado como uma extensão do próprio Guzmán. Mesmo quando intromete a própria ficção nos seus registos de documentos de memória.
“Eu faço documentários, mas sempre com guiões”, como confirma na entrevista a Maria José Bello, na mais recente edição da revista Cinémas d’Amérique Latine. É esta a sua forma de se aproximar ao tema de uma maneira imaginativa. “Estar com a câmara diante de algo que não tens ideia e se tem de transformar numa sequência é o mais bonito do documentário”.