É difícil encarar A Ilha dos Amores, o filme de Paulo Rocha (1935-2012), realizado em 1982, de uma forma serena. Ou seja, distante do seu tempo e da confluência dos diversos materiais que influenciaram o cineasta. Uma coisa é certa, mesmo passadas quatro décadas da sua estreia oficial – em 1982, no festival de Cannes, já que em Portugal o lançamento comercial seria apenas em 1991 -, torna-se claro que se trata de um marco incontornável do cinema nacional. E um cinema que vive do tempo e nele persiste. A presente edição em notável cópia restaurada, respeitando os índices de cor das cópias da época, apresentada em Cannes, em 2018, na secção Cannes Classics, tem agora reposição nas salas, bem como nas plataformas de suporte digital, streaming (Filmin) e VOD, permitindo o desfrute de uma experiência muito semelhante à original. Há que (re)descobrir a ilha!
O que importa sublinhar é a relevância desta produção do início dos anos 80 e o lugar de destaque que ocupa na afirmação da modernidade do cinema português, em dissonância relativamente a formas de produção que insistiam em piscar o olho aos modos de fazer comerciais. É também essa uma das razões pelas quais A Ilha dos Amores é um filme capaz de olhar para si próprio, ao mesmo tempo que analisa os caminhos do processo pós-revolucionário em curso na época. E nada melhor do que a reflexão do sobre o imaginário lusitano que constitui a própria biografia do autor Wenceslau de Moraes e do seu longo exílio em Macau e depois no Japão, onde viria a morrer.
Sim, este é um filme que analisa o seu próprio passado, o sonho imperial, bem como o legado da obra máxima de Camões, com a qual este filme se relaciona de uma forma muito particular, além da inspiração assumida na obra poética de Chu Yuan (340-278 aC), um dos poetas chineses mais antigos, em particular a antologia dos nove cantos. E de inspirações, nem valerá a pena falar, por exemplo, do mestre clássico nipónico Kenki Mizoguchi (1898-1956), de quem Paulo Rocha era profundo conhecedor e admirador. Da mesma forma, também não será casual que evoque a memória de Wenceslau de Moraes (1854-1929), um oficial da marinha no final do século XIX, com missões em Moçambique, Timor e, Macau, acabando por se fixar como cônsul em Kobe.
Igualmente sólida é a proximidade de Moraes com Camilo Pessanha, um expoente do simbolismo (por oposição do realismo) e grande influência no modernismo, imortalizado com uma fotografia de ambos diante do famoso busto de Camões entre duas rochas, em Macau, com Paulo Rocha a encarnar a personagem de Pessanha. Talvez por aqui exprimindo a modernidade da sua ideia de cinema, até de certa forma a marcar um afastamento ao realismo de Os Verdes Anos (1963). Pois, de certa forma, tanto Rocha como Moraes se entrincheiram nas suas ‘ilhas’ imaginárias – ou seja, o local ou universo que habitam. Uma metáfora utilizada também pela crítica da altura, ao referir-se à própria ‘ilha’ de um certo cinema português, muito mais próximo do cinema de autor que marcou esse início dos anos 80, de resto, sublinhado pelo apoio concedido pelo IPC, procurando utilizar em seu favor algumas tensões identitárias e uma certa reformulação do que então de chamou Cinema Novo. O mote talvez seja dado pela percepção de isolamento (outra ilha?) dado pelo ultimato inglês, em 1890, deitando por terra maiores ambições coloniais. Ou seja, a tal “roda do tempo que gira para trás”, como a refere a personagem de Jorge Silva Melo (1948-2022), o pintor remetido a uma cadeira de rodas.
Na encarnação do escritor e poeta Wenceslau de Moraes, Luís Miguel Cintra afirma-se como um dos maiores expoentes da interpretação lusitana, antes ainda de se tornar num ‘actor olivereano’ (atente-se a recordação que dele faz nesta entrevista, em Cannes, depois da apresentação deste filme), mesmo que já aqui se notem esses traços. É mesmo imperial a sua dedicação a este português que ao longo do filme se tornará cada vez mais japonês. De resto, falará japonês em inúmeras cenas. Tal como Paulo Rocha no documentário A Ilha de Moraes (1984) que também realiza. Ao lado do actor, Clara Joana, representa a referência poética de musa e narradora, dando o melhor destino aos diálogos em português de Luiza Neto Jorge, bem como de Zita Duarte (1944-2000) e Jorge Silva Melo, cuja carreira sempre esteve ligada à de Cintra – tanto no cinema como no teatro (fundaram ambos a Cornucópia, em 1972). E até Paulo Rocha que assume a sua presença, tanto no filme como no documentário.
A organização requintada de mise en-scène suege-nos extremamente organizada em longos planos sequência, por vezes com mais de 8 minutos, em que o plano se modifica e evolve, por vezes, combinando um jogo de espelhos, de objectos, dos próprios corpos, subjugando-nos a atenção, mesmo quando o tom vocal e o ritmo das récitas dos escritos de Moraes podem desafiar a atenção de alguns. Mas será também aqui reside o modernismo de Rocha. Pois assim vai atingindo uma almejada depuração de cinema.
Rocha canta os amores de Moraes, em particular as duas mulheres da sua vida: Ó-Yoné (Yoshiko Mita), a mulher de “coração de passarinho”, que viria a morrer cedo demais, e a jovem Ko-Haru (Atsuko Murakumo), amplamente discutidas no documentário – de resto, são assombrosas as semelhanças das actrizes com as fotografias. Um amor algo fatalista, de certa forma a dar razão ao poema “quem mais ama morre primeiro”
Como que a repetir o que dirá Moraes no final, junto à sepultura da mulher: “A minha casa é aqui!”. No cinema.