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Amaya Sumpsi sobre ‘Entre Ilhas’: fui percebendo como a minha maneira de filmar já era antropológica

 

Há uma tapeçaria de múltiplos rostos e depoimentos em Entre Ilhas, o documentário da espanhola Amaya Sumpsi (em co-produção com a Cedro Plátano), há muitos anos a viver em Portugal, entrelaçando outros tantos destinos de gentes entre as ilhas do arquipélago dos Açores. Um filme que se destina a complementar a tese de doutoramento em Antropologia Visual (na Universidade Nova de Lisboa).

Percebe-se a simplicidade do dispositivo de câmara que observa e procura o depoimento, bem como a coerência do projecto centrado naquilo que está ‘entre as ilhas’, procurando criar diversas linhas para formar o seu retrato antropológico – digamos o ‘monstro’ que enforma todos aqueles que dependiam de ligações marítimas – ou quando as ligações aéreas não eram ainda uma alternativa.

Percebe-se a vontade de evocar esta necessidade de deslocação, não só a Lisboa, de que dependia muitas vezes uma jornada de vários dias, senão mesmo semanas, bem como as outras ilhas. É por aí que começamos a compreender o filme, mas também aquilo que nos diz muito destes seres insulares. Que vivem totalmente rodeados pelo mar, mas que se sentiram forçados a olhá-lo de costas. Desde logo, pela sua fúria de mar alto que desaconselha uma vida a ele ligado, pelo menos desde foram abandonadas a caça a baleias.

O comandante (foto: Cedro Plátano)

Percebe-se que este é um filme feito a meias entre a cineasta Amaya e a antropóloga Sumpsi, em que a proximidade e contacto com as pessoas que entrevista gera diferentes tensões nas linhas que formam este bonito mapa feito de rostos e destinos.

Qual foi o ponto de partida para o teu projecto? Onde o lado académico (com a nossa FCSH) se conjuga com a parte da vida. 

Este projecto nasce como um filme, não nasce como uma ideia para a universidade ou para investigação. Nasce como um filme, inicialmente, só sobre o Santorini, o barco que em 2016 fazia a ligação entre ilhas. São viagens muito longas onde os açorianos de alguma forma se apropriam desse espaço e se misturam com os estrangeiros, se conhecem uns aos outros. Quase transformam o barco numa casa. É quase uma décima ilha em movimento. Só que ao fazer perguntas, toda a gente me remetia ao passado, quando o barco era o único meio de transporte. E falavam nos outros barcos. Há um provérbio local que diz: “o mar aproxima as terras que ele separa”. Eu fiquei a pensar nesta ideia: será que o mar aproxima, será que afasta? Como é que os açorianos sentem o mar neste sentido de estrada? Percebi então que isto também era interessante como investigação antropológica. A partir daí se juntaram as duas intenções – a cinematográfica e académica. Embora por lados paralelos, mas é certo que se contaminam. É inevitável. A criação cinematográfica influencia a minha escrita antropológica e a minha reflexão antropologia influencia o meu olhar cinematográfico. É um bocado isto. O que eu quero sobretudo é fazer as pessoas viajar comigo. No tempo e no espaço. Há uma viagem pessoal, minha; uma viagem dos ilhéus – cada pergunta que eu faço, eles viajam para trás. Na tese é uma reflexão, mas que se tocam. Já era assim no meu filme anterior Meu Pescador, Meu Velho (2013).

Ambiente a bordo (Foto: Cedro Plátano)

Foi complicado organizar este projecto e esta produção?  

Na verdade, comecei a filmar sozinha, sem apoios. O que tive foi uma bolsa da FCT para desenvolver a minha tese. E essa bolsa claro que me ajudou a viver enquanto filmava. Eu fazia a fotografia, a câmara, as entrevistas, os enquadramentos. Tinha uma pessoa que me acompanhava sempre com o som. Isso foram quase três anos. Dois anos e tal. Tive só o apoio da Atlânticoline, que me deu as viagens grátis. Isso ajudou. Quando já estava tudo filmado apresentámos uma proposta ao concurso do ICA para finalização. Aí foi a Renata Sanches, produtora da Cedro Plátano que aceitou o desafio e entrou comigo nesta candidatura. E conseguimos. Portanto, foi com o apoio do ICA e a Cedro Plátano que avançámos para a finalização. Entretanto atravessámos a pandemia. Concorremos para o Doclisboa e para o Indie, mas o filme não foi aceite em nenhum dos dois. Aí o Rui Pereira da Zero em Comportamento foi ver o filme e fez-nos a proposta para o distribuir. O facto de estrearmos em sala comercial já é um feito, porque era impensável. Sei que não é um filme fácil para o circuito comercial, mas é bom que a Antropologia Visual entre nestes circuitos. O facto de estrear em Lisboa, Porto, Leiria, Setúbal, já é uma grande alegria.

Parece-me que o projecto obedeceu a algumas linhas – o título mostra isso mesmo ‘entre ilhas’ – portanto, a caminho, mas também a evocar a memória. O que foi que não quiseste mostrar?

A pergunta é muito boa, porque aponta para este espaço entre as ilhas que eu queria, de alguma forma captar senhorialmente, emocionalmente. De alguma forma preencher este espaço. Não numa viagem de ida e regresso, mas de um lado para o outro. Na verdade, a montagem deste filme foi muito completa, porque, como dizes, há aqui várias viagens, várias camadas. E era muito difícil fazer aqui uma ligação entre estas camadas: uma viagem espacial entre nove ilhas e Lisboa; uma viagem temporal com muitos barcos, com imensas memórias, desde 1940 até 1975, quando chegam os aviões. Uma viagem pessoal, que responde porque é que me apaixonei por este tema. O que eu quis foi tentar colocar-me a mim própria neste tempo, num mundo que parece estar longínquo, mas que não é. Todas estas viagens têm o objectivo de colocar-nos a todos nesse outro mundo. Uma coisa tão simples que é pensar como era dantes quando não havia aviões? Há muitos trabalhos sobre os baleeiros e sobre a pesca, mas à vezes as funções mais banais, com esta, que acaba por ter uma função vital. Depois, declarar o meu amor a este território. Como sempre faço nos meus filmes.

Entre Ilhas (foto: Cedroplatano)

Houve alguma inspiração estética, fílmica, que te orientou nesta viagem, pelos rostos, depoimentos e imagens de arquivo?

Não, não posso dizer que tenha havido algum filme em que tenha pensado, ou algumas imagens. Sabia muito cedo que queria mostrar este contraste com o Santorini, este ‘love boat’, quase de navio de luxo, em decadência. Havia esta ideia de contraste. O que queria era fugir dessa ideia de documentário histórico, que vemos na televisão. Porque é uma viagem muito pessoal e emocional. Uma viagem que eu fazia ao passado. Por outro lado, é a primeira vez que trabalho com imagens de arquivo – e talvez a última -, porque tem sido um horror com os direitos de autor. Ao mesmo tempo gratificante, porque é um trabalho de investigação gigante. A maior parte das imagens são de arquivos pessoais: de famílias no Canadá, no Brasil, em Portugal. A minha ideia era que estas imagens de arquivo tinham sempre de dialogar com o presente. E com a viagem no presente. Quanto às entrevistas, temos sempre a ideia de que é um registo televisivo, que não é cinema. Mas acho que é algo que tem a ver comigo e a forma como se filma o outro (como em Meu Pescador, Meu Velho). Acho que há uma forma de olhar o outro que passa pela empatia e a generosidade de querer ouvir. De estar ali para eles. Acho que isso é uma constante no meu trabalho.

Percebe-se que o lado humano (antropológico) é necessariamente a sua base. Fala-se de isolamento, e até de divisão de classes. E claro do relevo desse barco que liga todos os destinos – e até já produziu união de vidas.

Sim, o lado humano é a minha base. Eu nem estava a contar estudar Antropologia. Estava a estudar cinema. Vi casualmente um anúncio num mestrado na FCSH, de Antropologia Visual e pensei que me poderia interessar e ajudar a desbloquear a montagem do meu projecto anterior. Mas fui percebendo como a minha maneira de filmar já era antropológica. Eu fui descobrindo a importância destes barcos ao longo o trabalho. Mas muitas histórias não cabem no filme. Mas estão na tese.

Santorini, o barco de todos os destinos (Foto: CedroPlátano)

Entre ilhas e entre projectos? Ou seja, esta vida açoriana já te ofereceu novas ideias para filmar? 

Quando filmei o meu filme anterior Meu Pescador, Meu Velho tinha dito que nunca mas filmava nos Açores. Mas depois deste filme ja não digo nada. Não sou bem eu que escolho o lugar em que quero filmar, é mais o lugar que me escolhe a mim. Isto já me aconteceu muitas vezes. Agora estou com uma história de amor numa estrada entre Madrid e Lisboa. Uma aldeia que tem uma bomba de gasolina e um bar que se chama Rota 5. Tenho uma paixão por este lugar que me escolheu a mim. Acho que vai ser o meu próximo projecto. Mas não digo que nunca mais filmo nos Açores, pois tenho uma relação muito pessoal e de dívidas com este território.

 

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