Terça-feira, Outubro 8, 2024
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Carlos Eduardo Viana: “O MDOC não é um festival de tapete vermelho”

À conversa com Carlos Eduardo Viana, coordenador da direcção do MDOC, Melgaço International Documentary Film Festival

Poderemos dizer sem medo de errar que as oito edições do MDOC (a 8ª cumpre-se de 1 a 7 de Agosto) conferem alguma maturidade. Isto até numa altura em que o documentário ganha cada vez mais força. Concorda?

Estes oito anos serviram sobretudo para consolidar um projecto, digamos assim. Desde logo, para testar, para perceber o que funcionava. Realmente chegámos à conclusão que esta estrutura que criamos funciona. Este corpo que é o festival, um corpo que é formado por uma série de actividades que lhe dão uma certa coluna vertebral.

Isto porque um festival nunca é só filmes, não é verdade?

Claro, é evidente. E no nosso caso, principalmente. Por uma razão muito simples. Porque nós desenhamos um festival numa terra que não tem tradição em cinema.

Apesar de ter um belíssimo museu de cinema.

Exatamente, tem um museu do cinema (Jean Loup Passek), mas não tem tradição de cinema.

Zootrópio e Praxinoscópio: a pré-história do Cinema no Museu de Melgaço (foto: Paulo Portugal)

Mas ter um museu já é uma responsabilidade grande. Que acho até que rivaliza com o Museu Lumière, em Lyon, que eu conheço e não fica nada atrás…

E ainda estão a ser inventariadas peças.

Do espólio do Passek.

Exactamente, do espólio do Passek. Portanto, isto criou-nos uma responsabilidade com o território. Porque entendemos, percebemos que era preciso que o festival não se realizasse durante oito dias sem deixar as suas marcas. A nossa preocupação foi essa: deixar marcas. Como é que se deixam as marcas? Nós desenhamos duas actividades para isso. Uma que se chama Plano Frontal, que é uma residência fotográfica e uma residência cinematográfica – em que todos os anos quatro documentários sobre o território. Isso é logo uma memória que fica aqui.

Apresentação dos filmes do Plano Frontal. (Foto: Ariuna Bodgan)

Um património local, claro.

Geralmente, os documentários são sobre pessoas, histórias de vida, muito ligadas ao território. E podem ser consultadas por qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, porque estão numa plataforma que se chama O Lugar do Real. Uma plataforma criada pela Ao Norte, uma associação de Viana do Castelo (responsável também pelos Encontros de Cinema de Viana.

Foi esse projecto que deixa essas memórias audiovisuais e esse projectos fotográficos. Depois há outro projecto – Quem Somos, os que Aqui Estamos? – trabalha nas comunidades locais. Todos os anos selecionamos uma freguesia e trabalhamo-la. E trabalhamo-la como? Há um antropólogo que faz um registo e recolha dos álbuns familiares, durante uns 4, 5 meses. E a partir desses álbuns familiares e desse trabalho fazem-se exposições. Faz-se aquilo que chamamos fotografias faladas, que é seleccionar uma série de fotografias e pedir às pessoas que contextualizem a fotografia e aquela época. É a criação de uma memória e a maneira de ligar o festival às populações. Por exemplo, este ano já inaugurámos uma exposição em Castro Laboreiro, no dia 30. E vamos inaugurar outra exposição, no dia 5, em Lamas de Mouro. E vamos inaugurar outra ainda, em Castro Laboreiro, mas noutro sítio, embora também a partir destes álbuns familiares. É assim que ligamos o festival às populações. Pelo cinema, mas também por estas iniciativas.

Uma iniciativa que imagino que conte com o apoio local. Que haja o interesse local.

Sim, e tivemos sempre o apoio das juntas de freguesia…

Se não me engano, a iniciativa do festival partiu até da câmara…

Exactamente. Foi o Presidente da Câmara de Melgaço (Manuel Batista Calçada Pombal) que nos convidou para desenhar este projecto. Não fazia muito sentido ter um museu do cinema se não se falasse mais de cinema em Melgaço. O festival é também uma forma de dar alguma visibilidade ao museu do cinema. Estas duas iniciativas, principalmente, é que ligam o festival ao território. E deixam marcas. É essa intenção. A intenção é que todo este espólio, este arquivo possa ser consultado no museu, Memória e Fronteira, um museu muito dedicado ao contrabando e à fronteira.

O tema de Fronteira é algo que passa também nos filmes em competição

Sim, claro. Quando desenhámos o festival escolhemos esses três temas: Identidade, Memória e Fronteira. São temas universais. Por um lado, tem tudo a ver com a história local. Por outro lado, quando estamos a selecionar filmes sobre essa bandeira esse conceito é já muito claro. Porque a fonteira pode ser uma fonteira física, como pode ser uma fronteiras psicológica.

São ideias muito fortes. Ainda por cima hoje, numa altura em que as fronteiras estão cada vez mais questionadas. O cinema tem esse papel de reflexão.

Sem dúvida. Dentro do projecto do ‘Quem Somos’, além das fotografias faladas e das exposições, produzimos também no catálogo, que durante dois meses está também nessa comunidade um fotógrafo que está na comunidade e faz um projecto fotográfico naquela terra. Este ano, é a ‘Paisagem dita Casa’. Que foi feito em Lamas de Mouro. Tentamos trazer o documentário contemporâneo e o realizador. Para nós fundamental é trazer as pessoas e pô-las a conviver. Realizadores, alunos de escola, público, jornalistas. Não há aqui tapetes vermelhos. Toda a gente vai comer ao mesmo sítio, à cantina e todo a gente conversa umas com as outras. Isso para nós é fundamental. Isto não é um festival de tapete vermelho. Foi por isso que não fizemos o festival em 2020, por causa da pandemia. Para nós não fazia sentido apresentar o festival sem esta proximidade. É esta a filosofia do MDOC.

Mas como se sente este festival, que acaba por estar um pouco longe dos centros de decisão?

O nosso principal constrangimento é esta periferia do festival. Tentamos afirmar o festival. No entanto, gostávamos que o poder político reconhecesse que para a coesão territorial tem de haver também uma discriminação positiva em relação a estas manifestações periféricas. Porque eu para trazer aqui um realizador ou alguém, gasto o triplo do que gasta um festival em Lisboa ou no Porto. Basta analisar o financiamento público aos festivais, no último apoio, e 88,7% do financiamento está nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

O problema e que, às vezes a experiência de um festival mais importante não supera a de festivais mais pequenos, como este…

Na nossa perspetiva, o fundamental é mesmo o encontro com as pessoas. Um dos grandes problemas na atribuição dos apoios – claro que é uma coisa complicada e dava outra discussão – é, por exemplo, os critérios de atribuição de verbas. Os júris até podem perceber muito de cinema, mas não percebem certos festivais, porque nunca lá estiveram. O que nós defendemos em relação ao ICA é que, se não houver uma discriminação positiva, não há hipótese. Um exemplo de discriminação positiva poderia ser na percentagem do financiamento. Segundo os critérios do ICA, o máximo de financiamento é 50% do festival – que é o que destinam ao Indie, ao Curtas, etc. O que defendemos é que nos festivais periféricos essa verba possa ir ate aos 80%. Até porque estamos a falar de valores ridículos.

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