Como recriar o universo e o génio de uma personalidade tão multifacetada como David Bowie? Um universo que se espraia ao longo de mais de meio século de música, poesia, arte e uma performance que rendeu diversas gerações. Uma dádiva caleidoscópica à arte que só poderemos comparar (porque sim!) com o cinema de Jean-Luc Godard.
Moonage Daydream é essa tentativa estética e até filosófica de ilustrar as diferentes arestas de um brilhante. Tal gesto de ambição só poderia mesmo ser acompanhado de um mergulho total, um verdadeiro embodyment fenomenológico. Apenas permitido ao documentarista Brett Morgan pelo acesso sem precedentes à colecção pessoal do artista facultado pela David Bowie Estate. Incluindo as suas peças de escultura e pintura, nunca publicamente divulgadas, bem como a sua poesia.
De resto, é até com uma reflexão de Nietszhe que começa esta experiência sensorial. Não só para indicar o road map desta jornada, quem sabe se para fornecer alguma pista para o seu permanente questionamento, seguramente para esclarecer a profundidade da sua escrita, ou talvez até para sugerir um fluxo áudio e visual que nunca se circunscreve às músicas ou às várias entrevistas que polvilham o universo Bowie.
Já se vê, uma complexidade que não estaria, por certo, ao alcance de todos. E o nome de Brett Morgan à frente deste portentoso trabalho é um conforto. Ele de quem se diz ter revolucionado o documentarismo americano. Pelo menos, com os créditos bem firmados ficou pelo mergulho que fez na carreira do produtor de Hollywood bigger than life, Robert Evans, em The Kid Stays in the Picture (2002), responsável por moldar a saga de O Padrinho, apostar no pouco conhecido Francis Ford Coppola e até de corrigir para o caminho certo as suas opções iniciais, ajudando-o a fazer um melhor filme. E percebemos também a forma como digeriu o documentário biográfico sobre o líder dos Nirvana, Kurt Cobain: Montage of Heck (2015), evitando os clichés do músico e centrando-se na investigação policial que o envolveu, de resto com um acesso livre a todo o material pela viúva de Cobain, Courtney Love, que lhe sugeriu a ideia deste projecto. E mais recentemente a tremenda viagem etnográfica de Jane (2017), uma vez mais fundindo imagens pessoais com o ambiente (neste caso) animal da investigadora Jane Goodall.
O mérito de Brett Morgan foi a de saber montar, combinar esses diferentes elementos, essa combustão filosófica, por forma a atribuir-lhes significados entre aquilo que olhamos e aquilo que nos é devolvido e que nos ajuda a pensar na complexidade do artista, autor, actor. A tal ‘experiência cinematográfica’, em que abundam inúmeras referências e que incluem, por exemplo, excertos dos expressionistas O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, ou Nosferatu (1922), de F.W. Murnau, ou o surrealismo de Un Chien Andalou (1929), de Louis Buñuel, ou até mesmo excertos de O Triunfo da Vontade (1935), de Leni Riefenstahl (na tal encomenda de Hitler), bem como de Eisenstein (Ivan o Terrível), Kubrick (A Laranja Mecânica) o Ridley Scott (Blade Runner).
É mesmo Bowie que comenta a complexidade do tempo e o tal “manifesto da memória que surpreende o passado e o futuro sem chegar a ser verdadeiramente presente”. E por aqui se vê o mergulho fenomenológico de Bowie, aliás bem presente nos poemas que cantou. Registamos outra passagem: “não é a ti que o mundo se dirige, é algo que nos supera, num diálogo arcaico, possivelmente não mortal”. Isto para nos dizer que não há início nem fim. E que o significado é transcendente. Tudo é transcendente. Does it matter? Do I bother?
Assim foi atravessando os diversos tabus da sociedade, não contemplando fronteiras no seu pudim de novas ideias. Bowie que vai assumindo que nunca esteve seguro da sua personalidade, preferindo a designação de ‘coleccionador’ de personalidades. “Eu era budista na terça-feira e virava-me para o Nitezsche na sexta.” Mas também para o estado da arte, o uso da tinta, da luz, invocando o simbolismo de Vermeer, Tintoretto, etc, bem como o experimentalismo, os seus vídeos caseiros. No fundo, um mundo feito de ‘changes’, de transições, encaradas como desafios pessoais. De um permanente hit and run antes de ser catalogado.
Foi isso que fez o natural de Brixton (onde nasceu em 1947) mudar-se para LA, apenas porque detestava a cidade, e depois para Berlim, para procurar uma nova linguagem musical e novos processos de escrever junto de Brian Eno. Algo esotérico vital – como Heroes. Pelo menos, por um dia.
Este Atlas chamado David encerra-se com palavras dele quando percebe que atingiu um estatuto em que já nada tem a provar. Mesmo quando assume os grandes concertos em estádios, sobretudo na digressão Let’s Dance. É este o vácuo da minha vida. O sucesso sem crescimento. Até porque assume que “nunca quis agradar as pessoas”, mas apenas “ser orgulhoso e fazer com que gostassem do que eu gostava. Não o que eles queriam”. É esse também o sentimento do caos controlado que assume a derradeira fase da sua carreira. “Caos e fragmentação é o que gosto. Não há uma verdade absoluta.” E é essa transcendência que o remete para os mistérios da vida. E a constatação da sua finitude. Does it matter? Do i bother? Yes, I do. Pois, a vida é fantástica, nunca acaba, apenas muda. So, let’s keep walking.
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