Domingo, Outubro 13, 2024
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A lição de cinema que ilumina ‘Objectos de Luz’

Revisitar é encontrar espaços, mas que já não são dos filmes”, escuta-se no filme. Pois, é, somos nós que os vemos. E nos apoderamos deles. E eles de nós.” (Acácio de Almeida, in Objectos de Luz).

 

Objectos de Luz chega finalmente às salas depois de ter sido o filme de encerramento do Doc Lisboa. Trata-se de um gesto de amor ao cinema de Acácio de Almeida, na sua estreia estreia como realizador (em parceria com Marie Carré), e que pode também ser encarado como uma espécie de oráculo do cinema português, pelo menos, desde a sua modernidade (desde o Cinema Novo), já que o veterano director de fotografia assegurou uma boa parte da imagem desses filmes (e que agora são recuperados e digitalizados à luz do PRR).

Aos 84 anos, o director de fotografia Acácio de Almeida, cuja câmara captou toda a alma do Cinema Novo, em mais de 150 filmes, estreia-se na realização com Objectos de Luz. Em Agosto passado falamos com o realizador (e a companheira de longa data Marie Carré) nas vésperas de participar no festival de Locarno.

Objectos de Luz é um filme que reflecte precisamente a luz do seu trabalho, mesmo que este seja, ao mesmo tempo, um filme sobre todo o cinema. E talvez seja mesmo esse seu lado mais didático que confere a singularidade a Objectos de Luz. Pois essa dimensão de passagem funciona como uma reaprendizagem, uma redescoberta do cinema. Como um miúdo que lê, a certa altura no filme, um texto sobre a Luz no livro da 4ª classe.

Talvez por isso seja inevitável considerar este como um filme profundamente autoral e confessional, feito a quatro mãos. Mas que assume, parece-nos, o comprovativo do ADN onde se inscreve o amor que une este casal e a comum paixão pelo cinema.

É então no centro dessa grande beleza que se partilha a recordação mais singela das imagens icónicas, guardadas em infinitas latas de película – os tais fotões que se encontram e se fundem, produzindo uma luz nova, com essa íntima conotação difícil de afastar, na belíssima analogia que sugere com o amor que produz novos seres. Sejam eles em carne e osso, ou sejam filmes – neste caso será a mesma coisa. Veremos excertos de filmes de todos os grandes co cinema português: de Manoel Oliveira a António da Cunha Telles, António Reis e Margarida Cordeiro, de Paulo Rocha e César Monteiro, João Botelho, Raul Ruiz, Alan Tanner, etc, etc.

Numa das cenas mais surpreendentes do filme, escutam-se vozes aprisionadas da película que reclamam, “vamos ser etiquetados” e se revoltam, chamando a luz: “queremos brilhar”! “Vais-me concertar, não vais?”, implora uma voz. “Sim, claro que vou”, responde o timbre de Acácio.

Por aí se escutam as mais belas palavras de ordem aprendidas a 25 de Abril, no renascimento daquela nação. Ou a presença do rosto de Isabel Ruth e, sobretudo, de Luís Miguel Cintra no formidável plano campo-contra campo, em 1970, na curta Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, enfrentando-se a si próprio, qual feitiço do cinema que nos olha da forma mais penetrante. Ou o rosto de Maria Cabral prestes a ilustrar uma geração, em O Recado (1971). Entre muitos excertos (seguramente difíceis de seleccionar) Mas iremos comover-nos sempre com a escutar Zé Mário Branco a cantar “se eu morrer e tu ficares, adora-me o meu retrato”, em Agosto.

Objectos de Luz é essa partilha de um passado feito de imagens e temperado por conversas que se assume como partilha de uma fascinante e apaixonada visão de cinema.

(texto escrito em Agosto de 2022, agora adaptado)

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