Pode um filme salvar-nos? Pode. Tal como uma canção. No caso da vigésima entrega de Aki Kaurismaki, somos até salvos por ambas. Apesar de quase todos os seus filmes serem prolongamentos e versões do mesmo desencanto que afeta os tangos finlandeses (como o próprio um dia nos confessou numa entrevista – ver link), Folhas Caídas consegue a proeza de sublimar esta gesta de heróis improváveis numa pequena joia de cinema sob a forma de poema romântico. O filme recebeu o Prémio do Júri no festival de Cannes, embora a Palma de Ouro lhe tivesse ficasse muito melhor. Mas adiante.
Se ainda há dias pairavam no ar as listas com o elenco dos melhores filmes do ano, a estreia de Folhas Caídas logo nas primeiras semanas eleva a fasquia para um grau de exigência invulgar. À glorificação do dominante estilo palavroso e insuflado de efeitos, reafirma-se a solidez desencantada de personagens relegadas a uma réstia de esperança, convivendo com o desemprego, a opressão, a pobreza ou o alcoolismo. Ou seja, Aki baralha tudo e devolve-nos uma vez mais o génio de um cinema minimalista que nos parece segredar simple is better. Embora em dinamarquês (ou em japonês, como sucedeu no recente filme de Wim Wenders, Dias Perfeitos, que com este mantém uma singela proximidade).
É neste contexto desamparado que surge essa possibilidade de um romance passageiro. Como o que surpreende a assistente de supermercado Hansa (Alma Pöysti), encarregue da reposição de produtos, e Holappa (Jussi Vatanen), o apelido de um soldador com problemas de álcool e de quem nunca ninguém se interessou por saber o seu nome próprio. Alma que será observada com olho de lince por um vigilante que a irá repreender, e motivar o seu despedimento imediato, por trazer para casa um produto fora de validade. ‘Isso pertence ao caixote do lixo!’, dirá em jeito de sentença.
Mas o que poderá salvar estas almas errantes? O cinema?! Correto! E nada como o delirante filme de zombies, Os Mortos Não Morrem, assinado por Jim Jarmush, em 2019, a proporcionar a Alma e Holappa o seu ‘breve encontro’ na sala de cinema. Embora sempre com aquele ar doentio que rima com a cara dos mortos-vivos do próprio filme. Aliás, não serão eles zombies também?
Esse é o motivo para uma sequência breve, acentuada por um inesperado toque de cinefilia, em que se falará de Robert Bresson e até de Jean-Luc Godard, a par da intencional referência a Breve Encontro, de David Lean (ou talvez melhor da história de Noël Coward).
Será talvez devido a esse encontro com o cinema que o filme se liberta para uma poesia, por vezes sublime, revelando até a hipotética beleza que existe em estaleiros de obras, devidamente adornados por um tango finlandês, seja em momentos musicais, como o de um karaoke ou da intensidade austera do duo finlandês Maustetytöt, a quem já chamaram as Spice Girls finlandesas. Ou até na composição de uma arquitetura e estética que será irremediavelmente devedora à simplicidade do japonês Yasujiro Ozu. Aliás, uma vez mais, como o recente filme de Wenders.
Diga-se até que um jovem Aki terá mesmo confessado a sua veneração diante da campa do mestre nipónico, quando a meio da sua carreira disse “até agora fiz 11 filmes beras, mas decidi fazer mais 30 porque me recuso a morrer sem provar que nunca chegarei ao seu nível, Sr. Ozu.”
Esta comparação vinga, desde logo pelo rigoroso código estético integralmente apreendido e fotografado por Timo Salminen, o diretor de fotografia de todos os filmes e há muito tempo apaixonado e residente na zona de Sintra, motivando, aliás, a vinda de Aki para Guimarães onde vive sazonalmente há vários anos.
O que se passa então com as personagens destes filmes que irremediavelmente nos arrebatam? Eles que vivem numa zona interior, totalmente desprovida de emoções e quase sempre dominada pelos dilemas sociais de um operário. Quase como um poema desesperado. No caso de Folhas Caídas, com a proximidade de relatos radiofónicos do ataque à Ucrânia por Putin.
Nesse sentido, é como regressar a um país onde fomos felizes, mesmo que o sorriso seja um elemento ausente destes rostos desvelados de expressão. Até porque são os desprovidos que alimentam as suas trilogias. Com este novo filme a acrescentar-se à trilogia proletariado (Sombras no Paraíso, Ariel e A Rapariga da Fábrica de Fósforos), mesmo que mantenha proximidades com a designada trilogia da Finlândia (composta por Nuvens Passageiras, O Homem Sem Passado e Luzes no Crepúsculo).
De facto, as coisas podem ser simples no mundo Kaurismaki. E frequentemente são. Como atravessar uma cidade do lado ao outro, do bairro pobre ao chique, como sucedeu em Calamari Union, o seu primeiro filme, de 1985, em que uma quadrilha de uma vintena de homens deseja mudar-se do bairro pobre onde habitam para uma zona mais chique.
É esta métrica de modestos objetivos que tem alimentado as narrativas de um dos cineastas europeus mais relevantes. E cuja revisitação agora proposta apenas lhe confere essa certeza. E que pode até chegar ao salvamento por um happy ending abençoado por Chaplin e por Laika, a cadela que Aki descobriu em Braga.