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João Salaviza sobre ‘A Flor do Buriti’: “Acho que agora fomos capturados!”

Quem o diz é João Salaviza, no final da nossa entrevista, no cinema Ideal, juntamente com a sua mulher, Renée Nader Messora, e com Hyjño e Cru (Luzia Cruwakwy Krahô) os dois protagonistas de A Flor do Buriti, um filme que nos fala da resistência do povo indígena Krahô, do estado de Tocantins. Seis anos depois de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, o casal luso-brasileiro devolve-nos um quadro magistral de vida e resistência desta comunidade. A mesma onde vivem a maior parte do seu tempo. E, como refere Salaviza no título desta entrevista, de onde não parecem querer regressar.

Desta vez, a vossa presença na comunidade resultou em algo mais do que fazer um filme. Diria que foi ‘viver’ um filme. Isso faz algum sentido?

Renée Messora – Eu acho que o filme e a vida se misturam no nosso processo. A nossa relação com a comunidade já não tem a ver com o fazer ou não fazer um filme. É uma relação como você tem com a sua mãe, o seu pai, os seus primos. É viver um filme. Os processos se misturam completamente. Eu não sei te dizer onde começou a feitura deste filme. É uma teia composta por coisas que aconteceram há dez anos atrás e coisas que aconteceram durante a rodagem. 

E também coisas que aconteceram há 80 anos atrás também…

RS – Claro, toda essa parte histórica. Toda essa dimensão de trazer esse passado sangrento, que, na verdade, é um passado que se perpetua até hoje. Não começou nos anos 40, com o massacre contra os povos indígenas, começou com a invasão portuguesa e daí para a frente. Então este é um povo, como todos os povos indígenas do Brasil, e do continente inteiro, vem resistindo há 500 anos.

Nesse sentido, o colonialismo não acabou.

RS – Não acabou mesmo. De nenhuma maneira. Mas a nossa relação não termina com o cinema. Se amanhã a gente decide que não quer mais filmar, que quer abrir uma padaria, uma sapataria ou qualquer coisa assim, a nossa relação vai continuar existindo.

Entretanto, a vossa filha também já faz parte deste processo. Foi também algo natural, presumo.

RS – A nossa filha trouxe uma novidade, porque ela abriu portas de um mundo da infância que ainda não tínhamos. Então, com a chegada da Mira, e as relações que ela vai estabelecendo com a criançada…

A sua vida começou mesmo com esta comunidade, não é?

RS – Quando nós chegámos a Mira ainda não existia, mas a primeira vez que ela foi para a aldeia tinha seis meses. A partir dessa altura passou mais tempo dentro da aldeia do que fora dela. Até terminarmos esse processo de filmagem. Neste filme, quando saímos de lá, ela tinha quatro anos. Tem agora seis anos. E tinha estado a maior parte do tempo na comunidade. Ela trouxe muita coisa, porque para eles, um casal da nossa idade já é quase avô. E a gente não tinha filhos, então eramos vistos com alguma desconfiança pelas crianças. Com a chegada da Mira a molecada conseguiu reconfigurar esse olhar e abrir alguma portas. As crianças com quem filmamos têm um conhecimento profundo, porque são pessoas da nossa família na aldeia, pessoas que estão muito próximas e que tinham já uma relação de intimidade com a gente. 

Dentro da comunidade como vêm este casal, esta família que trouxe o cinema para a vossa vida? E como é que devolvem este gesto e como participam dele também?

Cru – Foi o Hyjño que conheceu eles. E já tinha começado o filme antes. Eu fui também convidada e aceitei o convite. Ele já tinha batizado, já tinha ganho o nome – porque não é qualquer pessoa que chega na aldeia e vai começar a filmar – portanto, já tinha essa família na aldeia. Ou seja, têm a sua família e na aldeia tem também a família. Eu aceitei com boa vontade e com a intenção de aprender como ser cineasta. Durante essa filmagem aprendi como enfrentar a câmara. Acabámos por integrar essa família. Foi muito importante aprender o que têm para ensinar, aprender como é o cinema na cidade tão distante da aldeia. Tudo isso é uma aprendizagem para mim. 

Talvez dessa forma, vendo o resto do mundo, acham que isso faz com que a vossa aldeia passe a ser até mais preciosa e que a devam conservar tal como têm feito até aqui?

Cru – O filme é importante para a vida das crianças na aldeia. Vou registando tudo o que eu aprendo e tudo o que temos na nossa vivência na aldeia. Então tudo o que aprendo levo para a comunidade e partilho porque também é novidade para eles. 

Gostava de saber como conseguem passar a vossa história para o filme com este cinema que chega? 

Hyjño – Hoje eu estou feliz porque a gente mudou a nossa cidade, Itacajá. Graças aos dois acabámos com o preconceito e descriminação. Isso era muito difícil para mim na época da minha juventude. Então para mim foi uma grande felicidade conhecer este casal, a partir da integração da família. A partir do batizado você vai conhecer toda a família dentro da nossa realidade; qualquer aldeia que você for, você tem família. Não é descriminado. Para mim, mudou essa visão dentro do filme. A gente está aqui para mostrar a nossa vivência, a nossa cultura, a nossa história. Muito do que vocês levaram para lá, para estragar um pouco, né?… (risos)

(risos) Sim, nós os ‘cupé’…

H – É. E agora eu vim para cá para a gente mudar.

Sim, temos de restituir, não é? 

H – Sim, a palavra certa é restituir. Nós vimos para cá para restituir junto com eles. 

Acha que este filme é também uma forma de restituição? De tentarmos perceber, quase uma dimensão ontológica, uma origem de tudo. Este encontro, este encontro da natureza, das águas. Neste caso, João, achas que é também um encontro do teu cinema? Como eu dizia à Renée, este é um filme que se faz vivendo, não é?

João Salaviza – Sim, eu acho que tem tudo a ver. Desde logo, o meu encontro com a Renée, que já tinha uma relação de alguns anos com a comunidade. E depois por me terem aceite no mesmo círculo de amigos, de afetos. A minha família não é a mesma da Renée. Nós moramos com a família da Renée, mas eu também tenho uma família da pessoa que me deu o nome.

RM – Com os Krahô, o homem sempre muda para casa da esposa. Quando um casal se casa, o homem vai viver com a família da mulher. 

JS – A Renée já falou da nossa filha e do tempo passado na comunidade. Havia uma premissa, um pouco vaga, mas eles falavam muito – o Hyjño, a Cru, o Ihjãc (Henrique Patpro Ihjãc), que foi o protagonista do Chuva, neste filme não quis atuar, preferiu estar atrás da câmara -, eles falavam muito da terra. Sim, ele participou no destino da realização, da construção da narrativa; quando entraram em Patpro, cada um trouxe as suas vidas, mas nada do que está no filme é inventado ou escrito por mim e pela Renée. A realidade vai-se organizando e o filme vai-se compondo e sendo moldado pelas vivências e pelo tempo. O Hyjño é aquela pessoa que vemos no filme…

E sem pensarmos naquelas ideias do cinema, o que é o documentário; se é cinema direto, se é cinema verité…

JS – Antes pelo contrário. Na verdade, isso não nos ajuda em nada. No momento de filmar não temos referências. As poucas referências que temos são as do cinema indígena – há um grande filme que foi exibido aqui, na mostra de cinemas indígenas do Porto[1] (e que vai acontecer novamente na Culturgest, no começo de abril) – um filme feito por um coletivo de cineastas de Maxakali, que é um outro povo que está em Minas Gerais. Há imensas dimensões que estão nesse filme e que, nós vendo esse filme, mais tarde percebemos que nós, por outros caminhos, também andávamos aqui atrás deste rasto, acho que é uma dimensão historiográfica que tem A Flor do Buriti, pensar uma historiografia feita nos termos krahô. 

Como a questão do massacre…

JS – Nós fomos parados na rua por um descendente de um dos que participou no massacre em 1940. Ele estava indignado e agressivo. E ficámos com medo. Ele dizia ‘vocês não têm fontes para falar sobre isso! Não há dados, não há bibliografia! O processo desapareceu. Quem são vocês para falar sobre isso?’ Houve algumas fontes, de um antropólogo dos anos 70, que encontrou documentos que falavam, na altura, de 30 mortos. Mas nós falámos com parentes mais velhos do Hyjño e da Cru, a bisavó que sobreviveu ao massacre, e fala em 70-80 mortos. A questão é então como é que um filme trás a possibilidade de historiografar o passado dos Krahô. Porque a tradição Krahô obedece à memória oral e como estas coisas foram passadas para os avós e netos, como o Hyjño diz no filme, ‘foi preciso muito sangue para nós termos esta terra’. 

É a preservação do passado deles que esta em causa, não é?

JS – No fundo, estamos sempre a enfrentar-nos com uma questão que é um desafio enorme para a nossa ontologia, e para os nossos automatismos intelectuais e discursivos. Eles destabilizam todos os automatismos que trazemos. Por exemplo, entre mercado e Estado. Na aldeia não há nem uma ambição nem outra. Estão o mais longe possível de ambas as ideias. Tal como a política. E aí falo da última sequência do filme, que considero o momento mais político do filme – mais até do que a sequência de Brasília, nas manifestações -, que é a sequência do parto. Esse é o momento mais político, pois percebemos como uma comunidade se organiza para parir. E como se mobilizam todas aquelas mulheres, parentes da mãe. Há uma politicidade nestas práticas que é muito antagónica para a nossa maneira de ver. Em Brasília são os Krahô a fazer política. Como ela é nos nossos tempos e no quadro que lhes é apresentado. OU seja, são muitas dimensões.

Eu fiquei muito curioso com o significado da palavra Krahô, que era, salvo erro, ‘nós humanos’…

RM – Não, isso é ‘merrim’. Essa é a autodenominação do Krahô. Porque os Krahô não se chamam Krahô, esse é um termo da antropologia. Eles chamam-se ‘merrim’. Eu para eles, não falo os Krahô, falo os merrim. A expressão é ‘da nossa carne’. 

JS – Há alguns anos atrás, mostrámos alguns filmes do Jean Rouch. E eles diziam: ‘é um ‘merrim tegré’! Tegré significando de pele negra. É um merrim africano. Houve uma identificação automática de pertencer a uma terra e a um lugar, sem ter nenhuma informação. 

JS – Sim, sim. Eu acho que será pela prática. 

Eu diria, e é quase uma evidência, que este é um filme, mas ao mesmo tempo um ato de resistência. Concordam?

Hyjño – Pela prática, pela cultura, pela história. Pela vivência, pela integração. 

JS – É com certeza.

RS – Tem várias dimensões. Fazer um filme já é um ato de resistência. Fazer um filme numa comunidade indígena já extrapola a ideia da resistência. E fazer um filme do jeito que a gente faz, já vai para outra camada… Portanto, são muitas ideias. Eu acho que o que fica desse filme, no final, com a cena do parto, é uma resistência. Pelo menos, foi isso que a gente tentou trazer para fora. São muitas camadas. 

Há uma altura em que se confrontam com a política daquele país, na época de Bolsonaro. Portanto, é a realidade que esta lá. Nesse sentido, não têm de a trabalhar muito do ponto de vista do cinema. 

JS – Isso foi o tempo em que filmámos. Era inevitável. Era como filmar uma guerra. Podes filmar um parto ou uma sequência de amor, ou uma pessoa a plantar batatas, mas há uma guerra sempre. Há um rumor que está sempre presente. É uma espécie de veneno que está sempre presente. São as múltiplas formas de invasão e que têm uma tradução visível – são as pequenas estradas dos ladrões de araras que vão abrindo na terra, os camiões que entram à noite e que eles ouviam, os aviões das fazendas fazendo voos baixos, para intimidar e para ver. Há uma sensação de cerco que esteve sempre muito presente. 

Qual é a expetativa em relação a este novo governo do Lula? Acham que vai mudar muito?

RM – Ao menos fizeram um ministério. 

Hyjño – Sim, temos um ministério originário, temos um presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Temos vários setores da Funai em que os parentes estão nesse cargo. Eu acho que nessa parte a gente está de parabéns. Mas o território era para demarcar mais. Aí é falha do ministério e do presidente da Funai. Precisa de melhorar mais. 

Para terminar, João, queria saber se vão continuar na comunidade. Se têm algum projeto que se ligue de alguma forma com Chuva e Buriti?

JS – Sim, há. Nestas semanas temos estado em contacto e temos falado com o Hyjño e a Cru sobre coisas que gostavam de ver filmadas. Mas pode até o cinema deixar de fazer sentido. Não sabemos. É um ofício e uma forma de intensificar a realidade e a nossa relação com eles. E de ter uma prática coletiva, porque é o que sabemos fazer. Foi o que eu e a Renée estudamos e aprendemos. Não sabemos caçar, não sabemos construir casas. Tudo o que o Hyjño e a Cru sabem fazer no Cerrado, como apanhar remédios nessa gigantesca farmácia que é a floresta onde eles vivem. Mas o cinema permite uma prática comum. Permite conversas sobre o que nos interessa ter com eles e com outros amigos de lá. Mas, neste momento, estamos a pensar num filme novo. 

O que significa continuar lá.

JS – Sim, continuar. Não há outra maneira que não seja esta. E a nossa vida também se organiza muito em função disso.

Sentes que fazem cada vez mais parte dessa comunidade, é isso?

JS – Sim, acho que agora fomos capturados.


[1] https://artes.porto.ucp.pt/pt-pt/noticias/mostra-de-cinemas-indigenas-no-porto-24906

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