Rui Simões está de parabéns. Não só pela estreia, nas salas de cinema, de Primeira Obra, mas também por esta ocorrer precisamente no dia dos 50 anos sobre o 25 de Abril (e um mês depois de celebrar 80 anos). Até porque se faz acompanhar da reposição de uma cópia nova digital, em alta definição, do documentário Bom Povo Português, realizado em 1981 e que constitui, por mérito próprio, a mais lúcida reflexão sobre o processo revolucionário em curso. Já depois de Deus, Pátria Autoridade, o documento que Simões realiza, logo em 1976, a partir do estudo que faz dos arquivos da RTP e dos 48 anos do fascismo em Portugal, já depois de regressar do seu exílio na Bélgica, recusando-se a participar na guerra colonial.
A ousadia do próprio título celebra até a vontade de dotar de alguma ficção a eterna ligação entre ‘real-ficção’ (aliás, o nome da sua produtora), narrando a sua vida e carreira através da personagem do cineasta Simão, reincarnada com enorme eficácia e fleuma por António Fonseca, numa muito curiosa linha de autoficção, desenhada pelo argumento de Sabrina D. Marques, a partir de uma ideia do próprio Rui Simões. Michel (Zé Bernardino) é um investigador luso-descendente que acompanha e analisa a obra de Simão para uma tese de doutoramento sobre os caminhos de uma revolução não totalmente concretizada. No fundo, esta Primeira Obra funciona como um divã onde Rui Simões aceita deitar-se no divã da história para uma meditação, ou ajuste de contas, sobre o seu passado e a obra. Mesmo que à pergunta formulada por Michel “como seria fazer hoje Bom Povo Português”, o cineasta lhe atire com um sorriso irónico: “isso é o teu problema!”
É ao longo dessa investigação que a realidade se entrelaça na ficção, mas também pelo romance do investigador com Susy (Ulé Baldé), uma ativista ambiental que ele conhece na Cova da Moura, numa inevitável piscadela de olho ao documentário Ilha da Cova da Moura, que Rui filmou, de 2010, abordando a realidade da comunidade cabo-verdiana local. É até na personagem de Baldé que Simões evoca o seu próprio empenho de causas. Isto além da juventude de Michel recordar a sua própria, na mudança para a Bélgica, o estudo de fotografia e a intromissão do cinema, onde se incluem alguns excertos do cinema de Rui Simões.
Primeira Obra é assim um filme que assume o posicionamento do seu autor, mesmo sem recusar os riscos que lhe são associados. Com a particularidade de uma abordagem híbrida que motiva o espetador a ir mais além no seu envolvimento com o filme. Como que a investigar as várias pistas deixadas por Primeira Obra. É também dessas forma que o filme alcança a sua verdadeira razão de ser e o lugar individual que passa a ocupar na história do cinema português. Rui Simões bem o merece.