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Waiting for Don Quixote: quando só a imaginação supera a bruta realidade

Como encarar uma realidade imposta pela força das armas? Ao refletir sobre o prolongado conflito no enclave arménio no sul do Cáucaso e a mais recente agressão militar do Azerbeijão, em 2020, que acabou por ditar a ocupação total de um território secular, mas do que encontrar uma resposta, Narine Mkrtchyan e Arsen Azatyan sugerem no conseguido ‘ensaio filosófico’ Waiting for Don Quixote, um filme que nos marcou pela invocação que faz da liberdade e o poder da imaginação como resposta metafórica à guerra.

Ao evocar a figura icónica de Don Quixote, o cavaleiro sonhador do espanhol Miguel de Cervantes, os cineastas oferecem uma leitura crítica e sensível das profundas sequelas provocadas pela disputa entre os dois países. Este contexto de luta não apenas marca o pano de fundo da narrativa, mas atua igualmente como catalisador para uma reflexão sobre as ilusões, as esperanças e as tragédias da condição humana. Contudo, o filme espelha o vazio das pessoas que ficaram desprovidas de terras bem como de familiares desaparecidos. Talvez por isso, a intromissão da ficção bucólica e heroica do cavaleiro Quixote e o fiel escudeiro Pancha acabe por fornecer um elemento de suave utopia que transmite ao conjunto um espaço de reflexão e interpretação filosófica.

Se a obra de ficção se sustenta na ideia quixotesca de lutar contra “moinhos de vento”, as imagens de uma tremenda realidade recebem uma analogia pela resistência arménia frente à brutalidade da guerra e à ocupação. Nesta leitura, Don Quixote funciona sobretudo como representação da luta por um ideal inalcansável, bem como a busca pela autonomia do povo arménio. A introdução do tom picaresco da obra de Cervantes serve sobretudo como forma de explorar a fragilidade entre sanidade e a loucura em tempos de desespero, em que a ideia do cavaleiro errante simbolizar essa busca incessante pelo valor da liberdade, mesmo que esse desejo pareça fútil diante da brutalidade.

Mkrtchyan e Azatyan possuem já um corpo de filme assinalável, desde que formaram a primeira produtora independente da Arménia imediatamente após a desagregação da URSS, utilizando a sua plataforma para assinalar parte da memória malograda do seu povo. Os autores de Bobo/The Bogeyman (1991), dedicado à memória de Seygei Parajanov, do qual se celebra este ano o centenário do nascimento, mas também The Return of the Prodigal Son (2008) ou About him or how he did not fear the bear (2019), apresentam nesta nova entrega, um contraste agudo entre o realismo avassalador das imagens de guerra e a necessidade de recriar um mundo de fantasia, sugerindo que, quando a realidade se torna insuportável, a imaginação pode ser a única válvula de escape. A beleza ilusória de Dulcineia, a amada inatingível, reflete o anseio por um futuro melhor e a esperança de um mundo que transcenda a dor. Este elemento onírico é essencial para o entendimento do filme como um ato de resistência cultural e política, permitindo aos espectadores vislumbrar a possibilidade de uma vida além das cicatrizes da guerra.

Abordando a questão do direito à liberdade sob a sombra de um conflito territorial exacerbado pela intervenção de potências globais, Waiting for Don Quixote também se posiciona como uma crítica à cegueira da comunidade internacional. Tal como em Waiting for Godot, de Samuel Beckett, a obra dialoga com a condição humana e a espera por um salvador que possa redimir as vítimas. Essa espera, no contexto arménio, torna-se uma metáfora existencial para aqueles que sofrem as consequências de decisões políticas distantes e muitas vezes incompreensíveis.

Ao encapsular a complexa intersecção entre realidade e ficção, a escolha dos diretores alterna entre a brutalidade da guerra e a leveza da fantasia, formulando um convite à reflexão sobre as narrativas que moldam a nossa percepção dos conflitos. Dessa forma criando um espaço para que o espectador não apenas testemunhe a dor, mas também considere a importância da imaginação e da fantasia como ferramentas de resistência e esperança em um mundo frequentemente marcado pela brutalidade. Nesse sentido, o filme aponta o dedo à relativa solidão votada pela comunidade internacional, algo seletiva no seu posicionamento em relação a conflitos e ausência de direitos humanos. 

“Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda”. Esta foi a frase que passou à história, no western de John Ford, de 1962, The Man Who Shot Liberty Valance. Quase seis décadas depois, isso parece simbolizar o trauma sofrido pelo povo arménio. Uma emoção que parece imortalizada nas palavras de Quixote quando, no final, se vira para Sancho e diz: “sabes, acho que simplesmente abandonaste este lugar e regressantes em espírito.” 

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