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Ursula Meier compõe uma neurose bergmaniana em ‘A Linha’

Há uma exploração da disfunção familiar a marcar A Linha, o mais recente drama envolvente da cineasta franco-suíça Ursula Meier. Em que a música serve de um fio condutor, quase como uma linha invisível e separar, mas também unir, os membros de uma família. Depois da estreia mundial na Berlinale, em 2022, redescobrem-se agora os contornos bergmanianos que se adensam na revisitação do filme.

Meier serve-nos uma narrativa exasperante, salientando temáticas de perturbações familiares contemporâneas em que a música surge como metáfora de uma luta interna das personagens. Em certa media, como fora já em Home – Lar doce lar (2008) e Irmã (2012), ambos filme dominados por uma presença feminina (Isabelle Huppert e Léa Seydoux, respetivamente).

Kudos merecidos para Valeria Bruni-Tedeschi, tremenda, autoritária e distraída, como Christina, uma pianista clássica que abandonou a carreira pela família, ainda que sem deixar que suas três filhas se esquecessem disso. Elas são Margaret (Stéphanie Blanchoud), uma talentosa cantora e guitarrista pop, embora com tendências borderline, a maternal Louise (India Hair), sem vocação musical, e Marion (Elli Spagnolo), a mais nova, também ela com alma artística.

Começa em slow motion o genérico do filmeObjetos pairam no ar. São CD’s, discos de vinil, pautas de música, jarros de flores que chocam na parede, ou mesas que saltam e corpos que rebolam ao som de Vivaldi. Até que eclode a cena de agressão, no confronto entre Christine e Margaret, orquestrada como um bailado, em que um golpe responde à carícia da mãe.

É a partir desta robusta apresentação, milimetricamente filmada, que se abre ao mundo a motivação do gesto irrefletido. Mas qual será exatamente a causa? Talvez o lastro e ressentimento acumulados ao longo de uma vida inteira. Na sequência desse ato tresloucado Margaret recebe uma restrição judicial impedindo-a de se aproximar a menos de 100 metros da residência da mãe. A linha azul, pintada pela irmã Marion à volta de toda a propriedade, transforma-se numa barreira emocional imposta pela hostilidade.

Neste contexto, Margaret muda-se para casa do ex-amante (Benjamin Biolay), embora com a condição de cessar toda a ferocidade e de assumir o seu impulso como se fosse uma viciada. Contudo, essa linha acabará por ser assombrada pelas aulas de música que dá à irmã mais nova como forma de acalmar o conflito. É com base nesta geometria doméstica que emerge a vulnerabilidade anímica deste grupo de mulheres. Algo que se esbate à medida que se revela a humanidade e complexidade de cada uma. Meier reorganiza o espaço com subtileza, simbolizado pela retirada do piano, talvez o objeto que mais marcas deixou nesta célula familiar.

A Linha é um filme que evoca uma relação entre a arte e a música, e através dela, o cinema. Ursula Meier revela a sua naturalidade na direção de atrizes, bem como na orquestração dos espaços que libertam a imaginação. 

É através deste lado bergmaniano, ancorado numa neurose que contamina o elenco feminino, que Meier se diverte a navegando entre os registros de histeria, crueldade ou até mesmo comédia, estabelecendo um espaço de diálogo onde loucura acaba por se redimir. Seguramente, um filme que sugere aproximações à retrospetiva de Ingmar Bergman em exibição no Nimas.

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