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Verdade ou Consequência: o jogo da vida de Luís Miguel Cintra

Como se capta a vida e a carreira de um monstro de cena como o Luís Miguel Cintra? Fica claro que Verdade ou Consequência (produção C.R.I.M.), vencedor do prémio do público no Doclisboa 2023, será apenas uma das múltiplas hipóteses para abarcar a presença e inspiração do fundador e encenador do Teatro da Cornucópia (1973-2016), provavelmente, um dos maiores atores portugueses (senão o maior!), pelo menos, do último meio século. Como tal é um filme único.

É o próprio LMC quem se interroga, no filme: “qual é a nossa casa? A do cinema? A do teatro?” Ambas, por certo. A atriz e realizadora Sofia Marques, amiga, colega e cúmplice das duas décadas que trabalhou com o ator de 74 anos, vai traçando a meias, e em jeito de conversa, esse trajeto muito sublinhado e orientado pela intimidade e lucidez do próprio Luís Miguel. Apesar de limitado pela doença de Parkinson, ainda o ano passado comemorou os seus 50 anos de carreira, editando o livro de memorias Pequeno Livro Arquivo — pensamento, palavras, actos e omissões(2023, Ed.70), ligando a criação da Cornucópia com o cinema, com a vida. Com tudo. 

Verdade ou Consequência? de Sofia Marques (Midas Filmes)

O que será então verdade e o que será também consequência? Nesse jogo estará, por certo, o espelho do teatro e do cinema, as duas formas de representação da imaginação que LMC abraçou na sua totalidade, mesmo que o teatro tenha sido (mesmo) a sua vida. Ou seja, a razão de ser do papel do ator. Talvez por isso, essa imensa fúria de viver e imaginação tenha teimado a escolher quase sempre o presente, em vez do pretérito, o documento narrado pelo próprio, à evocação biográfica. Será talvez esse o seu maior mérito. No espelho, seguramente, ainda a memória da peça com o mesmo título encenado em 2012, em que o próprio Luís Miguel adapta “Fingido e Verdadeiro ou O martírio de S. Gens, ator”, a partir de “Lo Fingido Verdadero”, de Lope de Vega.

O filme funciona então como uma revisão da matéria que foi a sua vida, e esse estar do lado de lá e de cá da representação. Assim vai comentando com Sofia Marques excertos de espetáculos que visiona no ecrã de um computador. Há a ida a Madrid, de certa forma o lugar da sua concepção (na residência onde Picasso, Llorca, Buñuel e outros boémios espanhóis viveram, segundo quer acreditar LMC), mas também para fixar Guernica, bem como visitas a espaços, cenários (inevitavelmente de Cristina Reis) e cenas de teatro, mas também de alguns filmes. 

Ainda que o espaço cinematográfico de Luís Miguel Cintra tenha ficado menos vincado no documento de Sofia Marques, o próprio Cintra tenha tratou de o recuperar nas diversas apresentações que fez no Ideal. Desde logo, pelos comentários após a projeção de Quem Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1965) e de Zéfiro, de José Álvaro Morais (1993). A propósito do primeiro filme, que marcaria a sua estreia no cinema (tal como a estreia também de João César Monteiro como realizador), comoveu-se com a cena surreal (a sua primeira) em que diz “agora já caem baratas do tecto”; ou ao confessar que filmou Zéfiro, vindo da Régua, onde filmava Vale Abraão, para rodar com o José Álvaro, no Algarve, durante o fim-de-semana. Aproveitou ainda para manifestar o seu lamento pela recusa do papel que Oliveira lhe oferecera em Amor de Perdição (1978) – na altura exigiu o papel principal de Simão. Ainda assim, o mestre convidá-lo-ia para O Sapato de Cetim (1985), prolongando uma longa e frutuosa colaboração.

Faz falta mais cinema em Verdade ou Consequência? Faz. Como faz falta a presença de Jorge Silva Melo, com quem dirigiu o Teatro da Cornucópia até 1979. Sobre o seu amigo Jorge, escreveu Luís no catálogo sobre o ciclo que a Cinemateca lhe dedicou ainda este ano. “O real que filmas já não é teatro, já não mente, como acontecia nos filmes supostamente de ficção que fizeste…” Ou quando escreve, citando o amigo “o ator não se deve exibir diante do público, o público é que vê a verdade que ele cria”.

Mas talvez o melhor seja mesmo a relação pessoal que Sofia Marques soube manter, dividida entre a o fluir dessa ligação pessoal e a necessidade de ‘encaixar’ certos momentos (seguramente icónicos) passados tanto no palco como no set. Tal como a escolha de Anna Magnani, em Carrosse d’Or/A Comédia e a Vida (1952), de Jean Renoir, o filme favorito de LMC, para a abertura e fecho deste ‘jogo’, entre a casa do teatro e a casa do cinema, numa celebração da fantasia. É então verdade ou consequência?

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