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A História de Souleymane: Encostado à parede!

Abou Sangare em A História de Souleymane. Imagem Leopardo Filmes

Estreia esta sexta-feira A História de Souleymane, um registo potente sobre imigração, dando visibilidade aos dramas de todos aqueles que vivem no fio da navalha: algures entre a clandestinidade, a exploração e a precariedade. O protagonista, premiado em Cannes, só esta semana conseguiu a autorização de permanência em França após três recusas.

Souleymane, imigrante ilegal, pedala pelas ruas de Paris. Entrega comida, encomendas, recados. No decorrer deste trabalho ‘uberizado’ (seja Uber ou Glovo, vemo-los por aí) em duas rodas vai alimentando a esperança de obter um direito de asilo e a proteção do estado francês. Pelo caminho ensaia a narrativa que lhe dê as respostas certas para a reunião decisiva com os serviços de imigração. A História de Souleymane é, sem favores, o filme da semana, num contexto que nos poderá ajudar até a repensar os recentes acontecimentos que tanto agitaram o nosso país no final de ano. Os diversos prémios obtidos confirmam o estatuto de grande filme para 2025. Trás no bolso os prémios de Cannes, na secção Un Certain Regard: Prémio do Júri, além da interpretação masculina, para Abou Sangare, a que se somou a mesma distinção no European Film Awards. O filme recebeu ainda o prémio da crítica internacional (FIPRESCI) e foi distinguido no festival LEFFEST – Lisboa Film Festival.

Boris Lojkine, o realizador francês com formação em filosofia pela École Normale Supérieure, regressa ao tema da imigração, após Hope (Esperança), o seu primeiro filme, de 2014, sobre a hipótese de romance entre dois jovens africanos durante a viagem clandestina entre os Camarões e a Europa. Propõe agora o passo seguinte neste guião escrito em parceria com Delphine Agut: ou seja, ao longo de 48 horas descrever a ansiedade e a série de acontecimentos do estafeta Souleymane antes da entrevista com os serviços de estrangeiros – de certa forma, o equivalente ao nosso AIMA (Agência para a Integração Migrações e Asilo). Só que a avalanche de pedidos forçou os refugiados a criar narrativas fictícias de modo a adaptarem-se aos minuciosos requisitos para serem considerados dignos de apoio.

Tremendo Abou Sangare, um mecânico profissional, de 23 anos, e ator não profissional, foi aprovado no casting de Boris Lojkine, tendo uma história igual na sua biografia. Só esta quarta-feira, ao fim de três recusas, conseguiu finalmente obter a autorização de permanência em França. Durante todo o filme sente-se o ambiente que mais parece uma panela de pressão. Lojkine não cede a facilitismos e vai gerindo as múltiplas crises com alguns momentos de doçura.

Raras vezes o cinema transmitiu uma intimidade e cumplicidade tão grandes como aquela que liga a interpretação física de Sangare à fotografia de Tristan Garland. A câmara conecta-se à energia do protagonista numa Paris noturna desde as primeiras sequências.

A história de Souleymane rima com a de centenas de milhares de migrantes com pedidos semelhantes nos diversos países da União Europeia. Na verdade, o resultado de três tentativas goradas de legalização, diante a OQTF (‘obligation de quitter de térritoire français’), uma medida que tem vindo a ser cada vez mais utilizada, colocando a França como o país da União Europeia que realiza mais deportações forçadas de migrantes. Um número que cresce: segundo a Wikipedia, em 2023 (o último ano de que existe registo), implicou 137.730 seres humanos. Por isso, este é um filme que nos olha de frente, como alerta para a realidade ao nosso lado. Algo que tem sido devidamente tratado pelo cinema. Por exemplo, em Portugal, vimos versões de Souleymane à deriva em Lisboetas, o bravo documental de Sérgio Tréfaut (de 2004, já lá vão vinte anos), um tema que o cineasta luso-francês, nascido no Brasil, revisitou depois em Viagem a Portugal (2011), com Maria de Medeiros no papel da médica ucraniana de férias que é interrogada, sem explicação, pelos serviços de imigração.

Abou Sangare em A História de Souleymane. Imagem Leopardo Filmes

No caso de Souleymane, a reunião final também parece uma interrogação. Esse espaço claustrofóbico onde a entrevista culmina com as emoções espelhadas na presença física de Sangare. Sobretudo quando a funcionária afirma que a sua é apenas uma versão da mesma história que ela costuma escutar. Nesse momento, a segurança estoica vacila, o olhar perde-se e as palavras tropeçam nas pausas e silêncios na decisão de assumir a verdade e a sua própria dignidade. O final deixa no ar uma certa perplexidade sobre a frieza do processo que ditará a vida de Souleymane. Assim nasce um vazio que deve ser preenchido pela discussão.

A História de Souleymane chega aos cinemas (esta sexta feira) ainda nos ecos da operação especial da polícia na rua do Benformoso, em Lisboa, onde centenas de imigrantes foram encostados à parede. Ficou demonstrando como as diferentes faces do realismo social são transversais a muitos países europeus. Nesse sentido, é magistral o significado e a dependência da bicicleta oferecidos ao espectador no filme francês, inesperadamente próximas do neorealismo italiano de Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica, em 1948. Só que no caso dos estafetas, o pior não é roubarem a bicicleta, como explica o cineasta nas notas de produção do filme, mas sim “não passar na entrevista de pedido de asilo.” Mesmo que este não seja um cinema de resposta, será, talvez, um convite a olhar para as pessoas reais. Neste sentido, já um dos filmes do ano. Pois, na verdade, “somos todos Souleymane!”

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