À neve e às temperaturas negativas no exterior, responde a Berlinale com um conteúdo de forte pressão política. Pelo menos, é essa a perceção da programação da 75ª edição do festival que decorre até ao próximo dia 22, véspera das eleições locais. E com tudo o que lhe vem associado a essa escolha. Seja como for, a filiação política nunca esteve totalmente afastada deste festival iniciado em 1951, poucos anos após uma devastadora guerra mundial, mas logo diante de uma nova guerra, desta vez Fria, e com uma ameaça atómica em pano de fundo.
Na verdade, hoje em dia, as coisas não estão muito diferentes. Seja na Europa, com um conflito ainda aberto, ou no Médio Oriente, seguro por pinças, diante de uma paz pífia. Como se isso não bastasse, soma-se ainda a arrogância da maior potência do planeta e o uso da contabilidade para se tornar ainda mais poderosa (e isolada). Como poderia então o cinema não espelhar todas estas feridas sociais, humanitárias, económicas, políticas e belicistas?!
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Essa vai ser a tarefa desafiante para o júri internacional, liderado pelo cineasta americano Todd Haynes – e de que fazem também parte, o realizador marroquino Nabil Ayouch, a costume designer alemã Bina Daigeler, a atriz chinesa Fan Bingbing, o realizador argentino Rodrigo Moreno, a crítica americana Amy Nicholson e a cineasta alemã Maria Schneider. A eles caberá a escola do novo Urso de Ouro, sucedendo a Dahomey, de Mati Diop, abordando o tema da restituição colonial de obras de arte.
Aliás, esse mote foi logo abordado na conferência de imprensa de apresentação do júri, presidido pelo autor de obras centrais do cinema independente americano, na década e 90, como Veneno (1991), Seguro (1995) Velvet Goldmine (1998) ou Longe do Paraíso (2002). Como se esperava, impunha-se ouvir a opinião de Haynes, o autor do intrigante I’m Not There – Não Estou Aí, explorando as várias facetas de Bob Dylan. Sobretudo na véspera da chegada a Berlim da equipa de A Complete Unknown, o filme (já estreado em Portugal) sobre o início de carreira e Bob Dylan, com Timothée Chalamet a dar boa conta do recado e a ver a sua composição de Dylan nomeada ao Óscar de melhor ator. Como ainda não tinha visto o filme, Haynes escusou-se de uma forma elegante, reforçando a tónica do seu filme: “Uma coisa que aprendi sobre o tema é que há muitos Dylans”.
De volta à política, abordou-se a reação ao posicionamento da administração Trump em relação ao cinema e à cultura, com Todd a afirmar que “vivemos um estado de crise local e global, com muitos amigos e em todo o lado a sentirem essa barragem, com muita preocupação e choque.” Ele que convocou a ideia de “manter a integridade naquilo que fazemos” e de usar o cinema como argumento de discussão de ideias, sustentando que “são a equacionar-se diferentes formas de resistência, até porque muitas pessoas que votaram neste presidente irão refletir sobre as suas escolhas.”
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Palavras que tiveram eco no colega de júri, o argentino Rodrigo Moreno (autor do ainda mais intrigante e irresistível Los Delinquentes), referindo que “na Argentina temos um governo com um louco fascista que se pronuncia todos os dias contra gays, educadores, tudo.” A fechar, Tricia Tuttle, a nova diretora do festival, sublinhou essa tarefa desafiante de “continuar a comunicar através do cinema, pois o facto de estarmos todos aqui já e um ato de resistência.” Mas, ao mesmo tempo, “rejeitar as ideias espalhadas por muitos partidos de extrema direita pelo mundo fora, pois o mundo tornou-se num lugar assustador.”