Quinta-feira, Fevereiro 20, 2025
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‘O Último Azul’, de Gabriel Mascaro: um ‘boat movie’ que navega o direito à resistência

Se o Festival de Berlim terminasse agora, já haveria motivos para a atribuição de um Urso de Ouro. Mesmo que O Último Azul não almeje o estatuto de obra-prima (nem o prémio máximo da Berlinale isso exige), o filme deixa espaço de sobra para que Gabriel Mascaro use cinema como um veículo potente e belo para passar ideias e deixar à discussão temas sociais e políticos da sociedade brasileira. Isto sem que o realizador de Boi Néon (2015) e Divino Amor (2019), ambos os filmes apresentados na Berlinale, se desvie da ideia da obra de arte.

Tem sido comentada, aqui no festival, a evocação no filme de um lado distópico. Contudo, não nos parece acertado. A menos que fosse encarado um prolongamento do governo Bolsonaro. Um helicóptero vai difundindo uma mensagem de propaganda governamental, sempre no habitual tom religioso, saudando que “o futuro é para todos”. E a sua aplicação prática é a condecoração de idosos, ou seja, mais do que 75 anos. “Mas desde quando ficar velho é uma honra?” Quem o reclama é Teresa (Denise Weinberg numa magnífica interpretação), do alto dos seus 77 anos. Só que a sua vontade já foi hipotecada.

Nesta nova realidade, o controlo e limitação de liberdade é escondido sob uma forma de descanso na ‘colónia’, uma variante de asilo de idosos, pois estipula-se que os visados não terão capacidade para gerar um sucesso económico. Alguns até desejam uma entrada precoce na colónia, pois já perderam a fé no mundo (e no futuro); outros são removidos compulsivamente pelo cata-velho (uma variante humana das motos que catam cães vadios); mas há ainda outros, como Tereza, que se dão ao luxo de reclamar: “Vou descansar forçado, é?”

Tereza é apanhada pelo ‘cata-velho’.

Mascaro encara nesta mulher o direito à resistência, de recusar o uso de fralda, de decidir o seu destino e procurar fazer o que ainda deseja fazer. Como andar de avião. Depressa percebe que a sua guarda (e os seus movimentos) pertence agora à sua filha (Clarissa Pinheiro), o que lhe impossibilita a deslocação sem apresentar documentos. Decide então fazer a sua viagem de descoberta por barco.

É aí que Mascaro faz uma vénia ao Herzog, de “Fitzcarraldo”, com Tereza a rumar, rio acima, na mesma deslumbrante região amazónica. Pelo caminho cruza-se com algumas personagens notáveis, sendo uma delas um irreconhecível Rodrigo Santoro, no papel do barqueiro alucinado, Cadu, sobretudo quando usa as gotas de baba azul de um caracol raro que lhe faz ver o futuro. A outra personagem é Roberta (Miriam Socarras) uma argentina ateia, vendedora de bíblias digitais (com bateria de uma vida inteira).

“O Último Azul” encontra assim a sua magia neste ‘boat movie’ (pois a estrada é o rio), ao longo da região lacustre da Amazónia. Precisamente onde o saudoso José Barahona filmou “Nheengatu”, em 2020, no mesmo (adivinha-se) Rio Negro, perto das comunidades indígenas. Como se percebe, este é também um filme que nos vive paredes-meias com a miséria. Mas também com a possibilidade de libertação e a procura de uma felicidade sem idade.

Em “O Último Azul”, não se puxa um barco através da montanha, como Herzog. Pelo contrário, Mascaro embala-nos ao longo do curso sinuoso deste rio. Sempre ao ritmo do fascinante jogo eletrónico de Memo Guerra. O cata-velho que se dane!

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