Há uma tremenda força no cinema do chinês Guan Hu – um realizador pouco desconhecido (até agora!), mas que nos aprisiona de imediato na impressionante sequência de abertura, captada num magnífico widescreenpelo diretor de fotografia Gao Weizhe. Percebe-se logo que é coisa de autor. A câmara acompanha ao longe uma minivan que se desloca na paisagem desértica. Sente-se a força do vento nesse lento travelling que é gradualmente absorvido pelo torpor de dezenas de cães selvagens que galopam para o vale acabando por provocar a viragem da carrinha.
Passaram pouco mais de dois minutos e já estamos rendidos a “Black Dog”. O cenário poderia até indiciar uma abertura em pleno Death Valley, de Ford, embora aqui com uma iluminação irreal que recorta as escarpas ameaçadoras das montanhas, conferindo à cena uma identidade própria. Quase de outro mundo. Só que este não é o deserto Mojave, mas o de Gobi, algures no noroeste da China.
Em “Cão Preto” sente-se uma proximidade ao western spaghetti, com uma galeria de personagens mais ou menos insidiosas. Aliás o protagonista Lang (Eddie Peng) possui até uma linhagem que não será longínqua de várias encarnações de Clint Eastwood. Pelo gesto cuidado de cinema, que não deixa de ser ‘rock and roll’ (já lá vamos), assenta-lhe bem o prémio de melhor filme na secção Un Certain Regard, este ano em Cannes.
Estamos em 2008. A data não é uma qualquer. É o ano das olimpíadas de Pequim, um verdadeiro marco para a China, quando este imenso país se abriu ao mundo, insuflando o peito nacional de orgulho, renovação e confiança no futuro. No entanto, Guan Hu opta por centrar a narrativa de “Black Dog” longe da capital e antes nos confins da China. Oportunidade para correr com os animais indesejáveis.
Lang é um dos passageiros que sai do veículo acidentado. Abalado, mas praticamente ileso, regressa a casa, após dez anos de prisão por participação num homicídio. Reconhecemos nele o típico anti-herói solitário, com uma proximidade a várias personagens emuladas por Clint Eastwood, ou à galeria de anti-heróis de Nicholas Ray. Há até parte do vaqueiro Robert Mirthum-Jeff McCloud, em “The Lusty Men/Idílio Selvagem”, de 1952. Também ele a regressar a uma terra que já não é o que era. Só que em vez de cavalos, Lang (que não deixa de ser um apelido que nos convoca outras tantas memórias do cinema americano) emerge de um passado de circo de rua, música e motocicletas.
Poderá ele regressar a casa? Só ser for como um cão vadio, já que é a única companhia que acabará por fixar numa cidade que lhe cresceu hostil. É a atmosfera sufocante da decadência do pai alcoólico, o ressentimento da comunidade e um magnata local do kebab.
Somado à ameaça de cães raivosos que vagueiam pelas ruas. Em particular um galgo sinuoso, dado como raivoso, a quem se afeiçoa depois de este o morder quando participava num grupo para capturar os animais indesejáveis, onde vemos, curiosamente, Jia Zang-Ke, no papel do organizador da busca. É quase como se essa cicatriz simbolizasse uma união entre ambos e os preparasse para a redenção. Aliás o filme sugere uma curiosa aproximação, a partir do momento em que os animais passam a ocupar os espaços dos humanos que se foram. E são em algum número, como os de um zoo abandonado ou os ocupantes de uma quinta de cobras de criação para alimentação.
Lang é já um homem diferente, reservado e silencioso, em contraste com a vida anterior. Um detalhe discreto é dado por um autocolante dos Pink Floyd que conserva na sua moto antiga. Algo que acabará por nos propiciar, lá mais para o fim, um potente momento musical que será igualmente um dos mais empolgantes momentos da fita. Aliás, “Cão Preto” deixa-nos algumas das mais belas cenas vistas no cinema este ano. Como a cena inigualável do eclipse do sol ao som dos Pink Floyd.
Ao longo da metáfora de mudança que une estes dois seres, cabe a observação metodológica que Guan faz às transformações – as boas e as más – ocorridas no seu país ao longo de duas décadas, bem como uma aproximação à clivagem entre a cidade e interior mais remoto.
Sim, Guan Hu é um nome a reter. Pertence à 6ª geração de cineastas chineses e fica muito bem na fotografia que tão bem capta a estranha aproximação de homens a animais. A sua realização hábil facilita a transição entre o humor negro e o drama contundente, acompanhando duas almas penadas em rota de renovação entre os resquícios de um terreno de western de redenção em plena China.
