Sábado, Agosto 23, 2025
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Il Cinema Ritrovato: Bem-vindos ao paraíso da cinefilia!

Entre Katherine Hepburn ou Lewis Milestone, Mikio Naruse ou John Ford, Flora Gomes ou Charlie Chaplin: o fascínio do cinema recuperado.

Imagine-se a cena: testemunhar o espetáculo da projeção de The Gold Rush/A Quimera do Ouro, de Charlie Chaplin, na Piazza Maggiore, uma das praças mais famosas do Renascimento italiano, acompanhado pela Orquestra do Teatro Comunale, dirigida por Timothy Brock, exatamente no dia do centenário da sua estreia em 1925. Uma sensação partilhada por vários milhares de espectadores, ocupando todos os recantos da piazza, tal como os degraus da basílica de São Petrónio, pontuada com ovações rendidas ao humor contagiante de Charlot. 

Segundo o comunicado oficial da Cineteca di Bologna, foram exibidos 459 filmes ao longo de 9 dias, no festival co-dirigido por Gian Luca FarinelliCecilia CenciarelliEhsan Khoshbakht e Marianne Lewinsky. As datas do programa oficial foram de 21 a 29, mas as sessões diárias começaram no dia 16 e estendem-se até ao dia 6 de julho, mantendo as projeções ao ar livre e na sala do cinema Moderníssimo, alargando a programação a três semanas de oferta do melhor cinema do mundo. E a prova esteve na lotação esgotada da totalidade das sessões. 

Terry Gilliam conversa com Gian Luca Farinelli.

Os múltiplos restauros de obras-primas desta 39ª edição foram acompanhados por diversos cineastas internacionais. Como Terry Gilliam, na celebração dos 40 anos do filme de culto, Brazil, participando numa conversa no Modernissimo; Jim Jarmusch apresentou Only Lovers Left Alive (2012) e Brady Corbet, na versão de 70mm de O Brutalista (2024); o cineasta iraniano Asghar Farhadi deu uma lição de cinema; Thierry Frémaux, o diretor artístico do festival e Cannes e do festival Lumière, apresentou Lumière! L’Aventure Continue (2025), o filme que prolonga a homenagem ao cinema dos irmãos Lumière.

As pérolas e os ícones

Uma das descobertas deste ano foi The Scarlet Drop, o filme perdido de John Ford, de 1918, após a sua estreia e, literalmente ‘ritrovato’, em Cuba, após mais de um século fora de circulação, mereça uma conotação de ‘santo Graal’, pela sua importância histórica. Até porque evidencia já os diversos elementos formadores da ‘autoria’ e legado de Ford, bem como um dos trabalhos mais consistentes de Harry Carey.

Five Easy Pieces (1970), de Bob Rafelson.

Five Easy Pieceso filme de Bob Rafelson, de 1970, com um supremo trabalho de câmara de Lázló Kovács, com Jack Nicholson à beira de se transformar numa das principais vedetas norte-americanas dessa década, num filme marcante do movimento New Hollywood. O vigor libertino da personagem de Bobby Dupea, que troca a vida burguesa de um pianista pela procura da verdade como operário num poço de petróleo é uma prestação difícil de superar.

Merece referência o restauro 4k da deliciosa comédia musical de Ernst LubitschOne Hour With You, de 1932, com a classe de Maurice Chevalier num filme ainda sem a censura do código Hayes (viria a ser imposta dois anos depois). Com a particularidade desta variante de The Marriage Circlede 1924, incluir a recuperação do crédito de George Cukor na assistência de realização, ausente em várias cópias devido aos inúmeros processos que moveu contra o estúdio da Universal, bem como as referenciações corretas das tintagens dos valores de cor usadas em algumas sequências. Esta a possibilidade de apreciar um filme injustamente ausente das listas dos melhores de Lubitsch.

‘Katharine Hepburn: Feminist, Acrobat and Lover’ é o nome do programa organizado por Molly Haskell. Mas a atriz é também a cara do cartaz do festival – numa imagem de Sylvia Scarlett, com Cary Grant, o filme de 1935, de George Cukor. Aliás, um duo campeão da screwball comedy, prolongado em Holiday Bringing Up Babyambos de 1938, ou Philadelphia Story (1940). Miss Hepburn, uma das atrizes singulares no cinema americano, foi capaz de superar as fases mais altas, mas também as mais baixas – ou seja, vencer um Óscar e passar, logo a seguir, ser conotada como “veneno de bilheteira”, em boa parte, devido à sua personalidade indomável, feminista e, demasiado, controversa para o seu tempo. Ela que detém um invejável (e insuperado) recorde de quatro Óscares de Melhor Atriz e ainda 12 nomeações, em quase sete décadas de carreira. Vestida de calças, a fumar, precisamente numa altura em que poucos estavam preparados para a aceitar, Katherine Hepburn estabeleceu um padrão de modernidade muito à frente do seu tempo.

Mereceu a atenção a retrospetiva de Lewis Milestone, ‘Homens e Guerreiros’, com curadoria de Ehsan Khoshbakht, indiciada na nossa recente entrevista. Um conjunto de filmes deste emigrante judeu-soviético que atravessam a sua longa produção desde o cinema mudo até ao macartismo e Lista Negra e esplendor dos 70mm, nos anos 60. Esta seleção de novos restauros e cópias de arquivo, recupera o talento de um cineasta capaz de fazer pontes entre diversas batalhas e dando provas de discernimento e empatia poética que ainda hoje nos sensibilizam. Apesar da densidade e desafios manifestados nos seus filmes, este moldavo de nascença impregnou essas histórias de coragem e humor inteligente. 

All Quiet on the Western Front (1930), de Lewis Milestone.

É o caso de The Racket (1928), selecionado para a primeira edição dos Óscares de Hollywood, em 1929, mas onde Milestone haveria de vencer, na categoria de realização, com a comédia The Arabian Knights. Incontornável o clássico pacifista, extremamente atual, All Quiet of the Westren Front (1930); o sensacional musical progressista, pre-Code, Hallelujah, I’m a Bum (1933), com Al Jolson; a adaptação do romance de John Steinbeck, Of Mice and Men (1939), sendo nomeado para quatro Óscares, nesse ano mítico de Hollywood; ou ainda a descoberta de Edge of Darkness (1943), um caso sério sobre a ocupação nazi na Noruega.

Por fim – mas bem podia ser em primeiro lugar – a vez de Mikio Naruse, no programa ‘Sorrow and Passion’, com curadoria de Alexander Jacoby e Johan Nordström, evocando o seu trabalho no período entre as guerras. De Naruse diz-se que é o menos conhecido dos quatro mestres do cinema clássico japonês, ou seja, além da santíssima trindade, formada por Ozu, Mizoguchi e Kurosawa. A retrospetiva concentrou-se nos filmes anteriores à guerra de 1939, nomeadamente o trabalho com a recém-fundada P.C.L., antes de se transformar na Toho. Oportunidade de contactar com algumas preciosidades, como Nyonin Aishu/A Woman’s Sorrow (1937), o mais feminista dos filmes de Naruse, com a colaboração de Chikao Tanaka, cuja mulher, Sumie, haveria de se transformar na argumentista japonesa mais importante, presente em grande parte dos filmes de Naruse do pós-guerra. Além das duas Partes de Kafuku/Learn from Experience: Part 1/Zenpen e Part 2/Kohen (1938), onde já usava as mais modernas tecnologias cinematográficas, em grande parte inspiradas nos modelos de Hollywood, bem como a utilização de novos estilos de iluminação e fotografia. Naruse aborda a vida urbana, demonstrando interesse pela condição feminina e o seu papel na sociedade japonesa. Imperdível também Tsuma Yo Bara No Youni/Wife, Be Like a Rose (1935), talvez o Naruse mais conhecido deste período, aquele que teve uma distribuição internacional (por exemplo, nos EUA).

Nyonin aishu (A Woman’s Sorrow, 1937), de Mikio Naruse.

Nota final. Apesar de Il Cinema Ritrovato ser um dos festivais mais importantes no contexto do cinema ‘antigo’, confirma-se a sua vontade de ser também imersivo e digital. Aliás, é bem visível a sua aproximação a um público (cada vez) mais jovem: seja através das possibilidades oferecidas pela aplicação do festival ou pelo perfil Letterboxd, a plataforma social dedicada à cinefilia. 

Para o ano há mais Ritrovato.

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