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‘Cutting Through Rocks’ reforça o olhar de resiliência nos prémios MDOC

'Cutting Through Rocks' Prémio Jean-Loup Passek - Melhor Longa Metagem

Uma das memórias fílmicas (e icónicas!) do MDOC 2025 inclui certamente uma imponente Sara, montada na sua motocicleta, a encarar o pôr-do-sol na paisagem rural iraniana. Imagens semelhantes já as vimos em vários westerns ocidentais, mas certamente não protagonizado por uma mulher que desafia a comunidade patriarcal da sua pequena aldeia. A verdade é que Cutting Through Rocks, da dupla Sara Khaki e Mohammadreza Eyni, impressionou muito e foi mesmo o filme vencedor do MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço, a concurso na competição de longa metragens internacionais para o prémio Jean-Loup Passek.

‘Kora’, o filme coral de Cláudia Varejão.

Ficou igualmente na retina a curta-metragem Kora, de Cláudia Varejão, como o melhor filme português (entre curtas, médias longas metragens) e Al Basateen, de Antoine Chapon, como a melhor curta internacional. Afterwar, da dinamarquesa Birgitte Staermose, obteve um atenção honrosa. Para o júri FIPRESCI, da crítica internacional – pela primeira vez no MDOC – a escolha da melhor longa metragem foi para My memory is full of ghosts, Anas Zawahri. De resto, um prémio partilhado também pelo júri Dom Quixote, que premiou ainda a curta iraquiana Beneath Which Rivers Flow, de Ali Yahya.

Inacreditável mundo

Rendemo-nos a Sara Shahverdi, em Cutting Through Rocks, e à forma como desafia as tradições rurais e patriarcais no Irão. Montada na sua moto, é uma fortaleza em permanente desafio, contra um sistema que chega até a questionar a sua identidade feminina. O filme adopta um estilo de enorme proximidade, na linha do cinema vérité, em que a dupla de cineastas ilustra a coragem e autonomia desta força da natureza.

Sempre de sorriso nos lábios, Sara tenta deixar o exemplo a um grupo de meninas ainda sem voto na matéria para eventuais casamentos combinados que as irão resgatar à sua infância e adolescência. Agradece ao pai por a ter criado mais como um filho, permitindo-a escolher o que vestir e até aprender a conduzir a mota dele. Uma determinação que propõe até uma recordação insólita, a de Barbara Stanwyck, em Forty Guns, sobretudo quando a vemos desfilar na sua moto seguida por esse conjunto de raparigas a quem decidiu ensinar a andar de moto.

Não são sorrisos, mas rostos sérios, tensos, os das mulheres que nos tocam a partir das photomatons que impregnam Kora, a curta metragem de Cláudia Varejão, um sério candidato a melhor filme do certame. Verdadeiros mugshots, registos emocionais de mulheres deslocadas, a braços com o medo, a opressão e o abandono. Evidencias de uma realidade marcada pela desigualdade e violência, ainda que refletida pelo tempo e a filosofia. Como que a refletir um mundo onde persistem e se impactam as mesmas questões. Resta ainda a esperança.

Olhos nos olhos em ‘Afterwar’.

Há um outro gaze que nos fita olhos-nos-olhos. É em Afterwar, o filme da dinamarquesa de Birgitte Staermose, que registou ante a capacidade de resistência de jovens kosovares, sobreviventes da guerra, entre um espaço e 15 anos. Entre alguma ficção e depoimentos reais, a câmara regista a uma esperança ambígua, desvelada pela contínua desolação e trauma. Como que sublinhando a persistência dos efeitos da guerra impregnados nas suas identidade. E no seu futuro.

‘Al Basateen’, abraçar uma memória virtual.

Temos de falar de Al Basateen, de Antoine Chapon e da sua abordagem híbrida e multidisciplinar que abraça a memória do conflito e torna visível pela reconstrução de imagens virtuais. É magnífico o registo que recupera a história, como uma verdadeira pièce de résistence, valorizando a importância da memória coletiva. Tal como os fantasmas do passado de Anas Zawahri, em My memory is full of ghosts, pois são eles que habitam uma cidade marcada pela destruição e resistência, onde os residentes enfrentam a dor, a perda e a esperança. É entre sonhos despedaçados e o desejo de partir que se manifesta uma narrativa silenciosa e emocional.

A imagem de um sonho em ‘My memory is full of ghosts‘.

O rosto fixo captado pela câmara de Ali Yahya poderia ser um filme. Ainda que Beneath Which Rivers Flow se deixe inundar pelas marés que ora ocupam, ora secam a paisagem. É quase como olhar para o mapa digital de Al Basateen. Só difere mesmo a intensidade do olhar. São paisagens destas, como as que vimos no MDOC, que não nos conseguem deixar indiferentes ao inacreditável mundo em que vivemos.

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