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Maria de Medeiros: “O trabalho artístico é um ato de resistência”

Foto Paulo Portugal

No festival Periferias, foi apresentado A Quinta, um filme que acaba de chegar ao cinema, mas que tivemos a oportunidade de ver em mais uma magnífica sessão ao ar livre. Desta vez na fronteira entre Portugal e Espanha. Trata-se de uma co-produção hispano-portuguesa dirigida por Avelina Prat, que marca a sua segunda longa-metragem. Filmado em grande parte numa aldeia do Norte de Portugal, o filme oferece uma dimensão contemplativa, quase poética, sobre perda, memória e o peso do passado. No centro da narrativa está Amália, interpretada por Maria de Medeiros, uma atriz com uma carreira longa e diversa que atravessa Portugal, Espanha, França e até Hollywood. Medeiros dá vida a uma personagem marcada por silêncios e dúvidas, que gere a sua “quinta portuguesa” com a firmeza de quem já viu demasiado para se deixar afetar facilmente.

Ao seu lado, Manolo Solo (que conhecemos de Fecha os Olhos, de Victor Erice), revelado nesta obra, constitui uma presença forte e silenciosa. A trama gira em torno de um jardineiro espanhol, que assume a identidade de outro, refletindo sobre o desaparecimento de uma mulher — uma imigrante sérvia que, de forma inesperada, regressou ao seu país de origem. Somente na sua quietude, as personagens revelam as suas emoções mais profundas, reforçando a ideia de que o silêncio é uma forma de comunicação. 

Maria de Medeiros e Manolo Solo, em ‘A Quinta’, um filme de passados misteriosos.

O filme que estreou na semana passada em Portugal, obteve um sucesso tremendo em Espanha, onde foi número dois no box-office durante duas semanas. O que torna A Quinta especialmente cativante é a forma como Avelina Prat suaviza as ideias, onde nada é imediato ou explícito, onde as personagens apenas destilam informações, oferecendo pistas e sinais que o espectador deve ler e interpretar.

No final da sessão, Maria de Medeiros falou com o público, numa conversa moderada por Rui Tendinha. Mas antes, tivemos oportunidade de trocar algumas impressões com a atriz possuidora de uma impressionante carreira, sobre ‘A Quinta’, aquilo que a motiva, a imagem que temos dela e a responsabilidade do cinema nos dias de hoje, como forma de acordar as consciências num mundo demasiado turbulento.

Tens uma carreira internacional longuíssima. Mas sentes-te mais uma atriz portuguesa, francesa ou do Mundo? A verdade é que deixas sempre uma marca muito grande. Como sucede neste filme, aliás. Como vês esse percurso, esta dávida? 

Eu acho que todo o trabalho é bom. Nesse sentido, não atribuo a nenhuma nacionalidade. Claro que aqui, neste filme, tenho uma proximidade com a personagem, porque efetivamente é uma portuguesa, mas que viajou, tem uma história misteriosa, e fala muito bem espanhol. Não se sabe porque fala tão bem a espanhol, mas alguma história lá atrás haverá.

Sim, algo no passado dela, não é? 

Sim, ela vem de África. Por outro lado, como realmente tenho duas filhas espanholas, senti muita proximidade com esta personagem. Tive muito gosto em interpretá-la.

Neste caso, bem como nos outros também, há sempre um grande rigor no trabalho de atriz, naquilo que é a personagem. Haverá alguma coisa tua que sempre passa para a personagem? 

Provavelmente, sim. Até porque levo todos os papéis muito a sério. Seja um papel que está há muito tempo no ecrã, ou um outro em que tenho uma mera aparição, tento sempre levar com a mesma seriedade. Faço também bastante teatro, como a peça do Bob Wilson, em que fazia de Pessoa (Since I’ve Been Me). Sim, suponho que haverá alguma marca, pelo menos um jeito, um modo de trabalhar que nesta altura já posso dizer que é o meu. 

E com o Bob Wilson, sentiste que houve um trabalho diferente em palco, do que quando estás num set, onde é sempre possível repetir? 

Há coisas que eu aprendi no palco que trago para os sets de cinema, e há coisas que são propriamente do cinema que eu trago para o teatro. Gosto muito de fazer essas interseções que enriquecem muito o trabalho. 

Trabalhaste já com imensos realizadores, mas, no teu caso, existe uma certa tendência para recordar aqueles papéis que marcaram uma geração. Falo, naturalmente, do Pulp Fiction, do Tarantino. Sentes que essa é uma forma trivializar o teu trabalho? 

Não, acho que é natural. É natural, porque é um filme que o mundo inteiro viu. Estou feliz por estar no Pulp Fiction, pois sempre achei que era um projeto superinteressante, muito antes de saber que seria um êxito mundial. Só tenho pena que houve tantos trabalhos posteriores, mas que poucos conhecem. Isso também tem a ver com a potência da distribuição. Dito isto, considero que tive muita sorte em ter participado em algumas pérolas que pouca gente viu. 

Além da colaboração com realizadores muito importantes, também tens um assinalável trabalho de realização. Sentes que essa observação privilegiada te traz algo para o teu trabalho de realização? 

Sim. Mas, na verdade, a realização é algo que eu faço quando posso. E a verdade é que estou quase sempre ocupada. Mas tenho os meus próprios projetos que estou a desenvolver, e que são vários. 

Alguma coisa que se possa adiantar?…

É algo que não está ainda muito anunciado… (risos) Mas está a caminho. Na verdade, tendo a priorizar o trabalho como atriz, até ao momento em que estou pronta realmente para filmar. 

Não me lembro de te ver trabalhar com a tua irmã, a Inês de Medeiros. Isso nunca aconteceu, pois não? 

Não, é verdade. Não calhou. 

No entanto, imagino que seguem, mais ou menos, o trabalho uma da outra…

Sim, devo dizer que sigo com muita admiração o trabalho da Inês como política. É um trabalho muito importante. E acho que ela o exerce com muita paixão e seriedade. Admiro muito isso. Além, de que temos uma terceira irmã, não é?, (a Ana Medeiros) que é música. E com uma carreira que sigo também com grande admiração. 

Pois, no fundo, têm todas esse enorme legado artístico do o vosso pai (António Victorino de Almeida)…

Sim. Que é importante, claro. 

Uma coisa que acho muito marcante no festival Periferias, é a forma como valoriza os direitos humanos. Como vês esta dimensão na cultura, sobretudo neste estranho mundo em que vivemos, que mais parece uma ficção distópica?… 

É alucinante, de facto. Acho realmente que o trabalho artístico se reveste de um aspecto de resistência. Sempre pronto a resistir, continuar a fazer arte, continuar a pensar, continuar a promover uma ideia de verdade. Sem entrar no delírio, com uma ideia de fazer justiça ao que é evidentemente injusto. Há uma grande manipulação e uma confusão generalizada. E justamente, é a leitura, ver filmes, fazer filmes… 

Falar com as pessoas.

Sim, falar com as pessoas, ler poesia, ver teatro, tudo isso, de alguma forma, nos ajuda a manter uma certa sensatez. 

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