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Martin Ritt, retratos de um cineasta engajado 

Paul Newman, em 'Hud', um dos cinco filmes que fez com Martin Ritt

O Festival Lumière iluminou a carreira de Martin Ritt, um cineasta cuja modernidade importa recuperar. As causas que ele defende continuam a ser as nossas. Que o digam Paul Newman, Sean Connery ou Sally Field!

Depois de Robert Altman, Sidney Lumet, Fred Zinnemann, Lyon, a cidade berço do cinema, prestou homenagem à carreira do cineasta americano Martin Ritt, cujo nome figurou na ‘lista negra’ dos perseguidos por convicções de esquerda, naqueles anos de histeria tendentes a formatar a cultura, como fora já o Código da moralidade de Hayes.

O festival apresentou 14 filmes restaurados (da sua obra, composta por 26 títulos), proporcionando ao público francês e internacional uma viagem pelo mundo de um realizador que, ao longo de quase três décadas, retratou com rigor, sensibilidade e coragem as questões sociais do seu tempo.

Sally Field e Barbara Baxley em Norma Ray, 1979.

Em boa hora, um cinema revelador de causas, tensões sociais e políticas, de uma verdadeira consciência humana teve a devida expressão projetada em imaculadas cópias digitais (embora nem todas, pois há, como sempre houve, espaço no festival Lumière para a projeção em 35 mm).

Nascido em Nova Iorque, de pais judeus, Martin Ritt foi um homem de esquerda que, desde cedo, se dedicou a refletir sobre as injustiças sociais. Entre 1956 e 1986, realizou 26 filmes que abordaram temas como a traição, a denúncia de regimes opressivos, a luta pela igualdade racial, o racismo, as desigualdades de classes e as injustiças estruturais dos Estados Unidos.

Muito mais do que um simples realizador, Ritt foi um verdadeiro ativista cinematográfico, cuja obra se inscreve numa linha de compromisso social que assenta em valores humanistas e na denúncia da traição política, da repressão ou da opressão social.

A sua filmografia destaca-se fundamentalmente ao longo de dois grandes eixos narrativos: por um lado, um conjunto de filmes ao longo dos compromissos políticos e sociais (Edge of the City, Hud, Norma Rae), por um lado, e da denúncia das injustiças, da traição e das opressões, por outro (The Molly Maguires, The Spy Who Came From the Cold, Long Hot Summer, The Front). Essas temáticas atravessaram toda a carreira de Martin Ritt, refletindo a sua consciência social e político-crítica. Daí que a sua obra seja considerada uma das mais coerentes e humanistas do cinema norte-americano, sempre com uma forte carga ideológica e uma vontade de promover mudanças sociais através do argumento fílmico.

Um desertor do exército (John Cassavetes) procura emprego nas docas de Nova Iorque, em Edge of the City(1957); já em No Down Payment (1957), quatro casais de vizinhos num novo bairro de L.A. sonham com o modo de vida americano, de pleno capitalismo, ao mesmo tempo que acordam para os seus pesadelos e a realidade que os isola. No mesmo ano, Ritt fixa bem os propósitos do seu cinema engajado. Mesmo quando funciona dentro do sistema dos estúdios de Hollywood.

Woody Allen co-realiza The From, 1976.

Só estes dois filmes mereceriam o espaço de uma peça à parte. Seja por comentar o carisma de John Cassavetes ao lado de Sidney Poitier, ou pelo emaranhado de relações que se estabelecem na vizinhança desse bairro-modelo, com um cinema que revela a experiência televisiva de Martin Ritt.

Ele próprio dará ainda vida (e obra!) à carreira de atores como Paul Newman, com quem trabalhou em um punhado de filmes — como sucede logo em The Long, Hot Summer (1958), o seu terceiro filme, juntando o seu imediato carisma a um avassalador Orson Welles, que faz de seu pai, apesar de ter apenas 8 anos. Por essa prestação irradiante, Newman recebeu o prémio de Melhor Interpretação no festival de Cannes.

Ritt soube tirar o melhor de Newman em Hud (1963), provavelmente o melhor filme de Martin Ritt, que evoca o estilo de western moderno, com um recorte psicológico, ou embalado no ritmo jazzístico, mas com uma fibra anti-racista, em Paris Blues (1964), uma vez mais contracenando com Joanne Woodward, já sua mulher. Ou ainda como um homem branco que viveu no seio da comunidade indígena, em Hombre (1967).

Na sua vasta carreira, inclui-se ainda a força de The Spy Who Came From the Cold (1965), baseada na obra de John Le Carré — na verdade, a sua primeira adaptação cinematográfica — que marca o seu entendimento do cinema como ferramenta de criticidade social e análise do mundo em crise. Como um filme anti-James Bond, tira partido de um Richard Burton de grande nível, ou The Molly Maguires (1979), curiosamente com Sean Connery, que evoca a linha da traição que marcou parte do seu cinema, inspirado na revolta dos camponeses irlandeses do século XVII.

O filme combina denúncia social, história e traição, com uma produção rigorosa, filmada em estúdio por motivos de segurança, retratando a luta dos trabalhadores e a cumplicidade muitas vezes estabelecida entre os opressores e os oprimidos — numa visão quase didática sobre a busca por justiça social e as alianças complexas que ela implica.

Ou o papel magistral de Sally Field em Norma Rae (1979), que lhe valeria o Óscar de Melhor Atriz em 1980, no papel da operária cheia de energia, que decide rever os princípios da sua vida e dedicar-se ao sindicalismo e às condições de trabalho da comunidade dependente de uma fábrica de têxteis. Outro destaque do ciclo é The Front, realizado em parceria com Woody Allen, em 1976, que retrata o drama dos cineastas perseguidos pelo regime do McCarthysmo, ao mesmo tempo que denuncia a censura, a traição e a perda de liberdade artística.

Ritt, que valorizava obras com forte ligação às questões sociais, nunca se limitou ao gênero de espionagem ou do western, embora estes tenham sido capítulos importantes na sua carreira. Tinha uma abordagem universal, sempre voltada para o realismo social, para o retrato das injustiças e para a luta contra o sistema.

Ao revisitar os seus filmes, percebe-se que a obra de Ritt permanece atual, não só pela força dos temas, mas também pelo compromisso ético e a coragem de expor verdades incómodas. O seu cinema continua a ser uma ponte entre o passado e o presente, provando que o verdadeiro talento artístico está na capacidade de provocar reflexão e de promover mudanças sociais.

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