Viagem ao fundo do pesadelo da ditadura militar brasileira e da corrupção endémica, embora com um olho a pensar no seu próprio devoramento. Agente Secreto assume-se como um thriller poderosíssimo, paredes-meias com uma vénia ao cinema de género e à sua memória. Sim, um dos grandes filmes do ano.
Kléber Mendonça Filho propõe uma acutilante observação político-social da realidade brasileira do final dos anos 70 — em particular, no Recife, a sua cidade natal — convidando-nos a enxergar uma realidade algo difusa, obtusa mesmo, vista pela lente tentacular e indiferente da ditadura fascista. Este ficou na memória e até uma certa hibridização de géneros sugere-nos proximidades com o cinema de Paul Schreder Talvez porque ambos explorem cidades como paisagens morais onde os protagonistas torturados entram em colisão com uma ordem social corrupta, frequentemente interrompida por explosões de violência e referências cinefílas que transformam traumas individuais em espaço político coletivo.
É genial a resposta de Kléber ao apresentar, de forma subtil, um ternurento gato com a particularidade de ser bicéfalo, portanto com duas cabeças. Gradualmente, este elemento — que também pode ser encarado como uma chamada de atenção para abrirmos bem os olhos — ajusta-se a esta saborosa viagem de múltiplas narrativas e subplots que nunca nos dá a tentação de olhar para o relógio ao longo dos 160 minutos de filme.
Agente Secreto foi uma “pérola” do Festival de Cannes 2025, conquistando o prémio de Realização, o de Melhor Ator para Wagner Moura, além do prémio FIPRESCI, conferido pela crítica internacional e pelos exibidores franceses. Possivelmente, o filme mais premiado em Cannes este ano. Foi justamente na secção Perlas do San Sebastián, dedicada aos grandes filmes dos últimos festivais (ou seja, Cannes, Veneza e Toronto), que vimos Agente Secreto.
Estamos em 1977, no Recife, no período mais raivoso da ditadura. Kléber aproveita a época para introduzir na realidade o elemento obtuso de uma comunidade mais preocupada com o carnaval, mas que acaba por ser “mordida” pela ficção do filme Tubarão, de Spielberg, libertando diversas possibilidades metafóricas. Aliás, o filme salta mesmo para a realidade a partir do momento em que é encontrado um tubarão perto da costa (algo não incomum no Recife) com uma perna humana no seu interior; e entra mesmo na hiper-realidade quando essa perna ganha vida e começa a atacar o bas-fond local, numa homenagem clara ao cinema de género e à série B, bem como aos mitos urbanos explorados pela imprensa sensacionalista. Ou até ao giallo, numa sequência de ação poderosa e sangrenta, em mais um quadro de cinefilia — isto é, o amor pelo cinema (e por uma época) que por aqui fica vertido.
É então, já com um body count de quase uma centena de vítimas durante o Carnaval, que surge Wagner Moura, um professor universitário variante do tal gato de duas caras. Ele é Marcelo (mas também “Armando”, na clandestinidade), investigando a identidade e a memória da mãe. Acabará por ir trabalhar no registo civil, uma instituição controlada por Euclides, um polícia corrupto, mas só depois de ver o seu projeto de investigação académica abortado por outro escroque municipal.
Sim, bem vistas as coisas, este é um filme sobre cinema. E sobre a sua duplicidade, o jogo que vive com a realidade. Há várias referências a salas de cinema, numa piscadela de olho ao seu filme precedente, Retratos Fantasmas, onde Kléber evoca essa herança da sua cidade natal. E é também na parte derradeira que Kléber nos remete para o presente, onde duas jovens se deparam com as gravações (já antes afloradas, en passant, em sequências alternativas). Pois é precisamente o passado de Marcelo (ou de Armando) que é igualmente investigado, como se tratasse de um inquérito policial ao passado.
Neste vai-e-vem entre a realidade e a ficção, vem-nos à memória que tivemos com Kléber, via Zoom, propósito de Retratos Fantasmas, a partir do já famoso sótão, onde tudo pode acontecer É um pouco assim que se passa em Agente Secreto: “finalmente, você vê uma mancha de sangue no chão, na calçada de pedras portuguesas. Eu não explico. Eu sei o que aconteceu, mas passa como algo muito forte e estranho ao mesmo tempo. É o que você sente muitas vezes quando você está na cidade e vê algo trágico. Mas também você não quer saber, não quer fazer perguntas. E vai embora. É um pouco essa sensação. Então esses materiais foram construindo o filme.”
Se o cinema de Kléber Mendonça Filho merecia inscrever-se no melhor da sua geração, então Agente Secreto pode (e deve) saudar-se como um dos mais bravos filmes sobre a memória do cinema brasileiro. E que supera largamente a trama algo morna da biografia que deu origem ao fenómeno Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Apesar de ambos retratarem, cada um à sua maneira, o período da ditadura brasileira, a narrativa construída por Mendonça Filho vai mais longe, assumindo um certo à vontade no registo de género, ao passo que Salles se deixa ficar por uma visão mais tranquila (e até algo burguesa?) da “peste”. Apesar de inócua a comparação entre ambos, não deixa de ser curioso — e merecedor de aplauso e entrega — estas duas ofertas sobre a memória no cinema brasileiro. Sim, até agora, o melhor filme do ano.
