Quarta-feira, Outubro 16, 2024
InícioCríticasBruno Reidal - Confissões de um Assassino: a anatomia do crime

Bruno Reidal – Confissões de um Assassino: a anatomia do crime

Raras vezes o cinema penetrou tão fundo na mente de um jovem assassino. Deve-se ao jovem francês Vincent de Port – tremenda estreia em grande formato – esta evocação da banalidade primitiva de um adolescente que massacra uma criança de 13 anos. Matei François Raulhac. E venho entregar-me. Assim, se anuncia à polícia, em 1904, o autor do crime.

Bruno Reidal, Confissões de um Assassino foi revelado na Semana da Crítica, em Cannes, 2021, em filme também em competição para a Câmara de Ouro por se tratar de uma primeira obra. O título original francês limita-se ao nome do rapaz, tremendo Dimitri Doré (ator revelação nos Lumière em 2023) como que a limitar e fulanizar o espaço de abordagem. Pois é precisamente esse fascinante relato da anatomia de um crime, narrado pelo próprio, que retira este filme da mediania do que costumamos ver. Aliás de acordo com o depoimento do próprio incluído num livro compilando as pulsões de diferentes serial killers (na verdade, assim se chamava o livro, de 2011, da autoria de Stéphane Bourgoin, como informam as notas de produção).

Ao evitar os clichés associados ao género, de Port cria um registo meticulosamente assente na descrição literal que o próprio Reidal fez a Lacassagne, um criminólogo eminente encarregue de compreender como um rapaz do campo, embora com uma inteligência superior, de resto compensada com o acesso a educação e formação religiosa, seria capaz de tal gesto tresloucado. É então no seu testemunho e sagacidade literária que reside a complexidade da personagem, algures na franja do bullying, da rejeição familiar, sobretudo numa época em que os filhos eram meras ferramentas de trabalho familiar. Ao fim e ao cabo na fina linha que separa os comportamentos desviantes.

Para se compreender o autorretrato do assassino, dois acontecimentos se tornam marcantes: por um lado, a festa familiar em redor da matança de um porco, quando Bruno era ainda criança – “matam-se os homens, como os porcos”, dirá a certa altura; depois, a violência exercida por um pastor que o masturba, acabando por associar o prazer ao desejo da mutilação humana.

É, de resto, com um grande plano de Bruno Reidal, totalmente entregue ao seu ato brutal, com que abre o filme. Talvez se detete até, na tremenda energia desse gesto, uma centelha de esgar de prazer. Algo que nos torna coniventes nos seus pensamentos mais tumultuosos, divididos em três fases diferentes da vida e devidamente interpretados por atores diferentes, ainda que com uma tremenda verosimilhança dada pelo seu ar taciturno, cabisbaixo, recatado e de olhar impenetrável.

Apesar do rigoroso registo de época, Bruno Reidal, mantém uma inesperada proximidade com a tensão e os meandros psicológicos da adolescência vividos há duas décadas em Elephant, de Gus Van Sant (2003). Dimitri Doré revela-se a traço grosso pela forma fria com que as suas pulsões mais violentas e os fantasmas da sua adolescência são descritos. Isto num registo que reorganiza a anatomia desse crime há muito premeditado. É nesse sentido que somos também testemunhas dele mesmo.

 Bruno Reidal é uma estreia saborosa, sobretudo numa altura em que demasiados filmes surgem como reféns de uma estética demasiado orientada por um facilitismo televisivo. Vincent le Port oferece um cinema e uma narrativa sem cedências que saudamos. Um cineasta que fica assinalado, embora este diplomado pela prestigiada FEMIS tenha já um respeitável corpo de curtas, em particular La Goufre, premiada em vários festivais, incluindo o IndieLisboa em 2016.

Bruno Reidal, Confissões de um Assassino
RELATED ARTICLES

Mais populares

Raras vezes o cinema penetrou tão fundo na mente de um jovem assassino. Deve-se ao jovem francês Vincent de Port - tremenda estreia em grande formato - esta evocação da banalidade primitiva de um adolescente que massacra uma criança de 13 anos. Matei François...Bruno Reidal - Confissões de um Assassino: a anatomia do crime