Em Neruda, a promessa de uma biopic convencional do poeta e activista politico é em vão. Pablo Larraín esmiúça-se sobre outro Pablo, e através desta união invoca uma liberdade que não parece encontrar lugar no subgénero. É como se Neruda fosse idealizado pelo próprio Neruda, uma evasão ficcionada que facilmente se encontraria no imaginário do homenageado, mais do que a visão do espectador.
Existe nesta metragem uma desfragmentação de todos os códigos assim aprendidos e instantaneamente abandonados pelo realizador desde o muito consensual Não, ou até do toque mais intimista e reservado de O Clube. Em Neruda o que está em jogo é a narração, mais do que a própria narrativa, quanto à fidelidade histórica, non troppo, o ficcionar de vidas estabelecidas, inserindo neste jogo personagens inexistentes e explicitar a biografia da existência memorial, acima da existência física. Sim, Larraín joga-se aos retalhos com a ferocidade de um esquartejador. O golpear de diálogos em prol de um raccord soluçante, os planos reféns de uma profundidade quase “velazquiana”, a falsa narração de personagens ausentes e até mesmo um twist que desafia a própria natureza do registo. Tudo com a graça e encanto de um elenco capaz de disfarçar esta tão deliciosa farsa (a estrutura policial) sob condimentos políticos, e deveras de salientar, acidamente politizados.
Luis Gnecco apresenta essa figura de um ego do tamanho do Mundo [Neruda], o burguês que secretamente integra o Partido Comunista, como uma força inesperada no combate a um regime, onde a sua palavra funciona como a mais poderosa das suas armas. Seguindo de perto, um Gael Garcia Bernal que o persegue sem perceber que como perseguidor converte-se no mais indefeso perseguido. Egocentrismo e ciclos experimentais de não-lugares e não-personagens, tópicos que afrontam em Neruda, e aos dois Pablos, a anti-sintetização da memória, não como uma formatização, mas como uma página em branco a merecer da escritura.
Enquanto isso, indicamos um dos grandes equívocos das distribuidoras, lançar Neruda depois de Jackie (visto que o filme foi produzido antes da biografia com Natalie Portman), o esboço da sua oficializada entrada no mercado de Hollywood. Mesmo assim, Neruda é digno do seu próprio feito.