Domingo, Junho 15, 2025
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A Prisioneira de Bordéus: duas mulheres em mundos opostos

A Prisioneira de Bordéus, o novo estudo psicológico de Patricia Mazuy, chega esta semana às salas. Com tremendas prestações de Isabelle Huppert e Hafsia Herzi.

Em A Prisioneira de Bordéus, Patricia Mazzuy assina um cuidadoso estudo de contornos psicológicos e sociais, focado do trajeto de duas mulheres de diferentes meios sociais e com soluções diversas para resolver os impasses da vida. Mesmo sem o fulgor avassalador dos irmãos desavindos de Saturn Bowling, o seu filme anterior, estreado entre nós no inverno passado, a cineasta francesa compõe um eficaz jogo de espelhos tensões assente sobretudo nas prestações competentes de Isabelle Huppert e Hafsia Herzi. 

O filme abre com uma vistosa sequência florida, acompanhada por um vigoroso momento musical. A imagem oblíqua revela-nos Huppert imersa num ambiente florido, irreal. Só quando o ângulo da câmara baixa e abandona o reflexo é que obtemos a sua versão autêntica. Essa ambivalência irá acompanhá-las ao longo de um universo paralelo, embora navegando em mundos opostos. Um mais decorativo, o da burguesinha Alma (Huppert); o outro, bem mais realista, da magrebina Mina (Herzi). E o que une então Alma e Mina?

Além do nome servir quase como uma variante do outro, as duas conhecem-se numa penitenciária, na hora da visita dos respetivos maridos, ambos presos. Um é neurocirurgião, mulherengo e colecionador de arte, preso por ter morto uma pessoa quando e fugido quando conduzia alcoolizado; o outro cumpre pena pelo roubo de relógios valiosos. Mina impressiona Alma ao encenar um esquema para antecipar uma visita para um dia não marcado. Comovida pelo gesto, como forma de evitar viajar várias horas de comboio, acaba por a convidar a ocupar um quarto na sua pequena mansão decorada com pinturas valiosas e uma oportunidade de emprego na lavandaria da clínica do marido. Poderia assim ficar perto dos seus dois filhos. Só que esta calma aparente irá receber uma gradual tensão, em parte pelos maridos prisioneiros, que acabará por resvalar para as mulheres.

Ao contrário do vigor explosivo do filme do ano passado, A Prisioneira de Bordéus opera as suas cambiantes emotivas, em diferentes graus de intensidade, embora talvez mais intensas em Herzi do que em Huppert. A certa altura, Alma reflete: “será que fazemos erros ou escolhas na vida?”, ao que Mina responde “fazemos o que podemos”. Ou seja, entre o excesso de liberdade burguesa e a realidade dos limites proletários, ao fim e ao cabo, esse traço divisor entre universos inconciliáveis. É aí que a narrativa propõe uma reflexão fina sobre as divisões sociais, as fronteiras identitárias e a ilusão de uma eventual integração que, na prática, parece impossível.

O talento de Herzi e Huppert reside na forma como representam essas nuances, entre tudo aquilo que as aproxima, mas também complementa. Se de Isabelle Huppert estamos habituamos a uma entrega completa que já contempla diversas variantes. Talvez até aqui um prolongamento de A Traveler’s Tales, de Hong Sang-soo, o filme que levou este ano ao festival de Berlim, entregando os seus recursos interpretativos a estranha (e fascinante) mulher sem bens que sobrevive apenas dar aulas de francês em Seoul. E até de Le Gens d’à Côté, de André Téchiné, igualmente presente em Berlim, de resto com um novo emotivo reencontro com Hafsia Herzi. Ela que nos tocou profundamente pelo seu investimento a expor a dúvida, a insegurança, nomeadamente, na cena inicial em que faz a sua ‘cena’ na penitenciária, bem como na cena final. 

Uma palavra ainda para a colaboração de François Bégaudeau na equipa de argumentistas o autor do romance Contre les Murs/A Turma, o filme de Laurent Cantet viria a ganhar a Palma de Ouro, em Cannes, em 2008, na forma como explora esse espaço de ambiguidade entre ambas, afinal de contas, uma outra ‘sala de espera’ onde irá convergir o desenlace final. Isto apesar do desenvolvimento final desta relação apenas confirmar o enunciado social do ponto de partida. Até porque a Mia “faz aquilo que pode”. Ou seja, dentro do seu mundo realista, na sua ‘prisão’. Mesmo quando a hipótese de algo diferente tenha sido equacionada.

 

A Prisioneira de Bordéus
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