“Estou feliz porque gosto do filme”: Jorge Cramez
Amor Amor, a repetição convida a pausa. E o que há no meio? Há para já essa década entre O Capacete Dourado, o tal filme que acelerou na ousadia e pintou uma personagem do motoqueiro endiabrado que todos queríamos ser. Agora é mais a sério, é mais a vida. É mais complicado também, mesmo que possa até estar escondido por uma trama de alguma trivialidade que as novelas sabem tão bem tratar. Tipo A ama B, mas B ama C, só que C interessa-se por A. Só que aqui estamos tão longe dessa ficção, é o género. Portanto, o cinema. O grande cinema, atrevemo-nos.
A repetição vem também à baila por ser um reencontro com Jorge Cramez, depois da sua apresentação no IndieLisboa, e onde a nossa conversa começou. Retomada agora, quase nove meses depois, no lugar onde tinha de ser, a Pensão Amor, ali na rua cor de rosa do Cais do Sodré.
O encontro que começou também por ser um encontro destes dois filmes, ou melhor dos dois guiões. O Jorge explica. Este guião foi escrito mesmo antes do ‘Capacete’. Para aí em 2001, 2002. Esse era um guião original, do (Carlos) Mota e do (Rui) Catalão. De resto, quando Cramez concorreu a apoios, fê-lo com os dois projetos, Capacete e Amor, foi o último ano em que o ICA – na altura tinha outro nome – aceitava dois projetos do mesmo realizador. E quando soube, por portas travessas, que tinha apoio, pensou que era Amor Amor.
Mas foi insistindo, porque era um guião que queria filmar. Mesmo tratando-se de uma adaptação do Corneille, tinha esse cunho pessoal que o movia. É estranho quando pegas numa peça, numa comédia do século XVII e percebes que está lá tudo da tua vida. Nesse sentido, é muito autobiográfico, assume o realizador de 54 anos. Nas personagens do Corneille descobri os meus amigos. Aliás, os grandes temas da vida estão no Corneille. A amizade, o amor, a traição, o casamento… o enamoramento, a tristeza, a felicidade. Estava tudo nos meus amigos, tanto quando escrevi a primeira versão, e o guião que fui reescrevendo os nomes faziam perto do meu universo afetivo. Tal como o Jorge…. Sim, confirma Jorge, não é impunemente que ele se chama Jorge.
Mas não só os nomes, os lugares acabam por ser também muito familiares. A praia do Meco, numa das sequências mais fortes e livres do filme, tal como a memória do Captain Kirk – aliás, o filme é dedicado a Tiago Vaz, um dos donos desse bar mítico do Bairro Alto em meados dos anos 90, no filme dado pelo nome do bar ‘Kirk’, onde se passa essa noite de fim de ano. Para além disso, relata Cramez, mantive alguma coisas do Corneille, é o lado mais teatral do filme – não queria perder o teatro, apesar de tudo. Uma peça bastante difícil, escrita em verso alexandrino, e traduzida por duas amigas que acabou por perder o rasto.
Este é, naturalmente, um filme de atrizes, de atores, de representação, de cinema. Mesmo que em tom naturalista, durante a tal derradeira noite do ano, em que tudo é posto em causa, todos os amores entram em processo de convulsão, mesmo que talvez seja para ficar tudo na mesma. Percebe-se a química entre Ana Moreira e Margarida Vila-Nova, mas também a cumplicidade entre Jaime Freitas, aqui numa espécie de alter ego do realizador, e Nuno Casanovas, e até o estranho mix entre ambos. Ainda assim, é também a cidade de Lisboa personagem omnipresente, como não poderia deixar de ser num filme tão ligado a memórias, espaços e amores que se vão partilhando por onde passam.
Claro que há também a presença do cinema clássico, do Renoir, do Nicholas Ray, talvez os santos de cabeceira de Cramez, aliados a Rohmer e Resnais, como o próprio assume. E será até, talvez, entre estes dois que melhor se acomoda este cinema que reflete sobre essa eterna busca sobre aquilo que aproxima as pessoas e as leva a pensar no significado desse amor amor.
Agora que aqui temos o filme, será cedo demais para perguntar se esta história acaba aqui? Como se previa, faz tudo parte de um devir que começou muito antes. A seguir estava a pensar adaptar o Platonov, do Tchekov, assume Cramez, embora também contextualizado no nosso tempo e no universo das raves, acrescenta. Estou ainda na descoberta, em pesquisa mental. A perceber como se constrói um guião com meia dúzia de ideias que eu tenho.
Voltando a Amor Amor percebe-se o nervoso miudinho de um autor que aguarda o reflexo do seu trabalho na pele daqueles que o desfrutam. Sinto uma enorme ansiedade, porque era uma enorme tristeza o filme não ter público, suspira. Depois pára e assume: Quer dizer, seria o normal, a relação dos espetadores portugueses e o cinema português não é de muito amor. Mas gostava muito que o filme tivesse espetadores. Até porque se sente alguma verdade quando diz algo que poderia parecer um lugar comum: o que mais gosto de fazer na vida é filmar.
Ao ver o seu menino partir não sente nostalgia. Não sou assim tão indiferente ao público. Estou feliz porque gosto do filme. Acho até que é bastante melhor que ‘O Capacete Dourado’. Mais adulto. É isso.